*Escrito em 18/06/2014.
Em 1994, Gaspar LeMarc, um
explorador francês, estava no meio de uma jornada através das cordilheiras dos
Alpes quando uma nevasca o separou de sua equipe e subitamente causou um
acidente que o fez cair dentro de uma crevasse – uma abertura natural entre
geleiras, cuja profundidade aproximadamente estendia-se até 90 metros abaixo do
chão. Quando recuperou a consciência, Gaspar descobriu que sua perna estava
severamente ferida e percebeu-se impossibilitado de escalar de volta à superfície.
Ao lutar contra todos os instintos naturais que possuía, e ao obrigar-se a
aceitar a pior alternativa possível no momento, Gaspar decidiu que não havia
outro meio a não ser se aprofundar cada vez mais dentro da crevasse e da
escuridão que a dominava. Depois de quase dois dias, Gaspar conseguiu encontrar
uma saída do outro lado, e ao retornar para a base reencontrou sua equipe
auxiliar que estava prestes a abortar todas as tentativas de resgate que já
haviam procedido, conforme o código de honra e ética dos escaladores. Diante
deles, Gaspar anunciou que apesar de estarem a ponto de desistir e deixá-lo
para trás nas cordilheiras e em suas memórias, eles estariam fazendo a coisa
certa. Porque diante de uma nevasca, conforme o código, é cada um por si, e um
homem que por acaso fica para trás, deve ser deixado para trás, para que a
segurança do grupo seja mantida.
Antes que
você tente pesquisar a veracidade desta história, permita-me poupar o seu
tempo: é mentira. É uma história fictícia que eu descobri dentre uma das minhas
diversas maratonas de seriados em que eu me perco para compensar pela ausência
de uma vida pessoal, amorosa, ou qualquer outra que não inclua uma escala
impiedosa de trabalho. Uma que insiste em não me dar sossego não só em horário
comercial, mas em qualquer outro horário socialmente aceitável que me permita
ser readmitido à sociedade como um ser ativo, solteiro e contribuinte de
impostos que prezam pela vigência de convenções sociais como a Copa do Mundo, a
Política de Economia Nacional e o Dia dos Namorados. O que também explica por
que eu ando tão ausente da vida noturna lá fora e tão online nas redes sociais
depois das duas da manhã.
Mas o meu
objetivo com esta história é similar ao que ela alude: como lidar com problemas
ou situações aparentemente impossíveis, a ponto de nenhuma equipe de apoio se
dar ao luxo de voltar para tentar uma missão de resgate. Porque assim como eu
imagino que seja dentro da comunidade de escaladores, na zoeira da vida também
é cada um por si. E alguém que por acaso tropeçar e cair, será impiedosamente
deixado para trás.
Apesar de
todos os aspectos bio-psico-sociais envolvidos, das normas morais que nos são
passadas de geração para geração, e de qualquer bom senso instintivo que seja
desperto em cada um de nós, não há argumentos contra o fato de que, quando
outros caem, estamos mais interessados em continuar seguindo em frente.
Especialmente para encontrar outras pessoas com quem a gente possa comentar sobre
como a vida do Fulano anda mal, e como ele provavelmente vai morrer congelado
naquela montanha de problemas dele. É a natureza humana no seu pior e,
invariavelmente, no seu normal.
Acho que
todo mundo em algum momento da vida já chegou em casa cansado depois de um dia
aparentemente interminável e abominável, e pensou “Eu preciso fazer alguma coisa com isso!.”. E pensou que mudar seria
a solução, e que daquela noite em diante, depois de abrir uma garrafa de vinho
(ou qualquer outra bebida que simbolizasse o triunfo do seu insight),
brindou consigo mesmo e jurou silenciosamente que “Amanhã será um novo dia, para um novo eu!”. E aí acordou, saiu de
casa, tropeçou na velha rotina de sempre e caiu na crevasse dos seus problemas
mais uma vez. E até aí tudo bem. Estamos vivos, logo, fadados ao acaso. Ao
imprevisível. Mas também, invariavelmente, propensos à sentença terminal dos
nossos próprios comportamentos padrões. Porque instituir uma mudança da noite
pro dia é difícil – talvez até improvável, dependendo do grau do seu desespero
silencioso. Por mais que você se sinta cheio de problemas, eles não irão
desaparecer na manhã seguinte só porque você subitamente decidiu que eles não
possuem mais a importância que tinham quando você passou no mercado para
comprar mais vinho antes de chegar em casa em uma noite solitária de inverno.
Foi então
que, ao voltar para casa em uma noite dessas, eu me lembrei daquela história
fictícia e do quanto – pelo menos dentro da lógica do episódio daquela série –
aquilo sinceramente fazia sentido. Se quanto mais você insistir em confrontar
os seus problemas sem nenhuma estratégia para resolvê-los, mais eles ganham
força e acabam com a sua paciência, porque não fazer o contrário? Claro que não
é fácil; admitir derrota, cansaço ou incapacidade vai contra tudo o que eu
visceralmente acredito. Mas talvez seja o que esteja me impedindo de encontrar
uma saída mais viável. Talvez, no final das contas, seja a chave da minha
sobrevivência. Às vezes na vida, para seguir em frente é preciso voltar atrás.
Às vezes para subir aos céus é preciso descer até os confins do inferno, nem
que seja para pegar impulso. E assim como o imaginário Gaspar, às vezes quando
alcançar a superfície parece impossível, talvez o melhor jeito de rever a luz
seja ao entregar-se para a escuridão da crevasse. E é exatamente isso que eu
vou fazer.
Que se danem
as contas, os amigos que não vejo há meses, a cidade em que parece cada vez
mais inabitável, o amor que talvez nunca chegue e a sanidade cuja qual eu gosto
de pensar que ainda tenho algum controle. Eu vou me arrastar até o limite, indo
contra tudo o que eu sempre acreditei que fosse o ideal, o certo, o justo para
mim, e vou parar de lutar contra a escuridão da crevasse, da qual o mundo real
está incomensuravelmente cheio. E vou encontrar a felicidade do outro lado, ou
vou morrer tentando. Metaforicamente, é claro. Porque eu tenho uma faculdade
para terminar, contas para quitar, um amor para encontrar que dure o resto da
vida, e um punhado de seriados para rever em Setembro.
Antes de
traçar qualquer estratégia, é sempre bom rever as prioridades.