Era uma manhã qualquer. De um dia
típico em uma semana ordinária. Nada demais, para falar a verdade. Confesso que
talvez esteja me tornando apegado demais a rotinas, o que é, no mínimo, iônico.
Visto que, meses atrás, logo quando cheguei aqui, tudo o que eu queria era ter
um pouco mais de noção sobre a cidade em que eu estava morando. E como os meus
dias nela iriam ser. Tudo era muito novo, muito rápido, muito espontâneo,
enquanto eu não sabia de nada do que iria acontecer em seguida. Não que hoje eu
saiba, mas o mistério que cercava os meus dias há sete meses definitivamente
parece já ter entregue o seu final. E não foi tão surpreendente quanto eu
esperava que fosse. Mas eu estou me perdendo do que quero dizer. O que eu quero
dizer é que, em uma dessas manhas de mais um dia insuportavelmente previsível,
parecia que só o que poderia me surpreender seria o fim dos tempos. Mas não. Em
vez disso, acabou o pó de café.
Quer dizer,
não acabou. Mas também não seria o suficiente para me despertar da ressaca da
contemporaneidade que eu estava sofrendo. A cafeteira iria passar pouco café e
eu iria passar muita vontade. Quis a vida, que eu não canso de dizer que é uma
eterna brincalhona com esses nossos dramas existenciais, que apesar de não
haver outro pacote de pó de café em casa, tivesse leite. E se eu fosse um fã de
café com leite, este teria sido o fim da história.
Claro que
não foi. E caso você ainda insista em continuar lendo, e se já conhece um pouco
da minha paranóia literária, acho que sabe onde eu quero chegar com isso...
Eu não gosto
de café com leite. Acho fraco, quase insosso, e uma fraude quando comparado com
café de verdade. Daqueles bem fortes e amargos, perfeitos para dias cinzentos
de melancolia e ressaca da contemporaneidade. Acho que a essa altura, vale
ressaltar que eu ando muito bem sim, obrigado. Mas eu devo confessar que sim,
estou sofrendo daqueles períodos de seca paradidática, onde qualquer migalha de
inspiração já serve para me colocar diante do terror de uma folha branca do
Word. Nem que seja para tornar o meu ócio um pouco mais útil, e para matar
tempo enquanto termino de fazer o download de mais uma temporada de alguma
série. E não me olhe deste jeito. Cada um tem o seu jeito de sobreviver ao “endomingamento” da alma. Ainda mais
quando isto não se limita mais aos Domingos.
Enfim, café
com leite me lembra fraqueza. E sim, antes que você me diga algo, eu gostaria
muito de ser capaz de simplesmente calar a boca e aproveitar um café com leite
como uma pessoa normal. Mas este não é o caso. Até porque, se fosse, o que eu
faria com todo esse potencial literário? Imaginação é uma coisa terrível de se
desperdiçar. Ao contrário do potencial do café com leite, que desde a infância
já é considerado como algo inaceitável. Porque nenhum de nós queria ser a
criança “café com leite” da
brincadeira. Aquele que não é capaz de lidar com a brincadeira igual a todos os
outros, e precisa ter um pouco de vantagem e piedade sobre os outros para
conseguir brincar também. Ou então era deixado de fora, porque ninguém queria
dar vantagem para ninguém.
E aí a gente
cresce, faz amigos novos, estuda, trabalha, namora e se der sorte é até feliz.
Mas nada realmente apaga aquele passado café com leite que te trouxe até aqui. Não
vou negar que já fui a criança café com leite, apesar de não me lembrar ao
certo da frequência que isso aconteceu. O que me lembro claramente era de odiar
ser a criança café com leite. E até de abandonar algumas brincadeiras por conta
própria, por não querer que outras crianças me dessem algum tipo de vantagem
para acompanhá-las. Às vezes porque os outros eram mais velhos, ou porque era
alguma brincadeira perigosa, ou porque minha mãe brigava comigo na frente dos
outros, dizendo que eu não podia brincar. “Porque
não e ponto final!”.
Ser a
criança café com leite significava ser a criança fraca, que poderia crescer e
se tornar um adulto fraco. Que precisa que os outros peguem leve com ele para que
ele consiga acompanhar a competitividade dos jogos dos adultos. A
competitividade do mundo real. Mas até aonde eu sei – o que eu confesso não ser
muito – o mundo real não se preocupa em dar vantagem ou não pra ninguém. Aliás,
ao meu ver, o mundo real é tão aleatório quanto as amizades que fazemos quando
somos crianças.
O que me
levou àquela manhã melancólica e mal humorada, com pouco pó de café e muita
vontade de acordar. Talvez fosse o resultado de uma noite passada ruim, ou de
um mundo de adultos que nos obriga a estar sempre alerta, sempre pronto, e
sempre com um estoque considerável de pó de café em casa. Na falta de
alternativa melhor, e de vontade de trocar de roupa para ir tomar café na
padaria da esquina, às favas com os padrões da sociedade e com o meu mau humor.
E joguei o pouco pó de café que restava na cafeteira, peguei o leite milagroso
que restava na geladeira e preparei a minha caneca. Quando o café ficou pronto,
hesitei um pouco antes de dar o primeiro gole, provavelmente impedido pelas minhas
lembranças asquerosas de infância e meus sentimentos amargos de jovem adulto
insosso. Mas quando dei o primeiro gole, o café com leite não tinha o gosto
ruim do qual eu me lembrava. Estava muito bom na verdade, mas tinha gosto de
ironia.
Depois de
anos comprometido com a noção de que café com leite é ruim, que ser fraco é
inaceitável e que competições existem para serem sempre ganhas, eu me peguei
questionando tudo isso a medida em que era despertado por aquele café da manhã.
Por que é tão difícil aceitar ajuda? Por que é preciso competir sempre, até
mesmo quando não há competição? Por que recusar o café com leite, apesar de ser
menos amargo, pelo café tradicional que os adultos tomam para se manterem
alertas? Parte de mim até gosta de ter esses momentos de claridade, porque ao
menos servem para me lembrar de que eu preciso ser menos exigente comigo e com
o mundo ao meu redor. Independente do que já aconteceu comigo, do que eu posso
fazer daqui em diante, ou da cor do gramado do vizinho. Ou, então, o café com
leite poderia ser só um café com leite. Que serviu para me trazer de volta à
realidade tão bem quanto qualquer outro café faria. E nem precisou me deixar
mais amargo para isto.
Paranoias à
parte, o café com leite também serviu para me lembrar de que eu preciso ir ao mercado.