Eu sempre digo que a culpa é
da minha avó materna, que se casou com seu primo de primeiro grau e, atraindo
assim a ira dos deuses, deu origem a todas as personalidades borderline que eu carinhosamente chamo
de família. Desde os primos ridiculamente bem sucedidos – alguns já casados e
com filhos, enquanto outros prosperaram na área profissional – até as tias
impiedosamente carinhosas – que não perdem a chance de questionarem, em um eco
de aconchego e ressentimento, quando é que o sobrinho querido irá visitá-las (e
se trarão uma namorada junto) – até, enfim, a mãe literal de todas as minhas
neuroses – que sempre me aconselhou, em matéria de amor e demonstração de
afeto, que é sempre melhor pecar pelo exagero do que pela falta. Tudo isso e
muito mais é o suficiente para explicar naturalmente os comentários sem censura
nos meus posts do Facebook:
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Família é
algo complicado, independente do endereço em que exista. Os personagens sempre
se repetem: a mãe superprotetora, o pai bravo, a irmã pentelha, a tia
descolada, o tio churrasqueiro, a prima gata (que sua mãe sempre faz questão de
lembrar que é sua prima), o primo arruaceiro e, claro, eu: o filho que precisa
ser ameaçado por chineladas para deixar o computador de lado e sair do quarto
para dar “oi” às visitas. A ovelha
negra que não sabe dar valor ao dinheiro e que só sabe ser irônico ou
sarcástico quando fala. Claro que há exceções, mas aqui estou desabafando sobre
os constrangimentos que vivi e, aparentemente, continuo vivendo através da vida
em família:
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Tem dias em
que eu me estresso e prefiro ficar no meu quarto. Pra quê almoçar juntos na
mesa, se já nos vemos todos os dias?! Por que a minha irmã não precisa ajudar
com as tarefas da casa?! Por que nada do que eu faço é bom o bastante, nunca?!
E assim passam-se dias sem conversar, olhares mal trocados no corredor e
encontros constrangedores na cozinha, quase como companheiros de apartamento
que não dividem nada a não ser o aluguel e, neste caso, o DNA. Mas foi durante
uma dessas discussões em que eu parei pra pensar exatamente sobre como eu me
sinto em relação à minha família, e foi aí que eu descobri algo ainda mais
terrivelmente familiar. Mais terrível ainda do que os comentários da minha tia.
Eu pensei
sobre o dia em que eu saí de casa da minha mãe, sete anos atrás, para morar com
meu pai em outra cidade. Algo que acabou por definir o começo da minha vida adulta
e todos os desenganos que eu viria a cometer por conta própria, sem mais poder
culpar minha mãe por me obrigar a ir almoçar na casa da minha avó e atrasar meus
horários para fazer tarefa, ou coisa parecida. E pensei no dia em que saí da
casa do meu pai para morar sozinho, e no quanto tudo naquela casa só iria
depender de mim – desde a compra dos produtos de limpeza até o extermínio de
baratas que apareciam pelo ralo do banheiro.
Além de tudo
isso, eu me lembrei da minha infância: dos aniversários magnânimos que meus pais
organizavam, reservando salões de festa e me obrigando a sentar e preencher os
convites para cada um dos meus colegas de sala, considerados até então como os
meus amigos que estariam prestigiando o meu dia. Lembrei inclusive dos vexames
que eu causava ao receber os meus colegas no portão do salão, balançando os
presentes embrulhados para tentar descobrir se era algo legal o bastante para
deixar o Fulaninho entrar.
Lembrei das
minhas primeiras paixões de colégio, e de quantas noites minha mãe passou
acordada me consolando porque a Ciclana passou o recreio de mãos dadas com outro
carinha – algo que me assustou ao considerar que este padrão não mudou muito
com o passar do tempo e a invenção do WhatsApp.
Sobre meu
pai, lembro da empresa onde ele trabalhava o transferir para outra cidade
quando eu ainda era bem pequeno. E de que todas as vezes em que ele vinha me
visitar, nós acabávamos por passear no shopping. Meu corredor favorito do
shopping naturalmente era aquele em que ficava a loja de brinquedos. Colecionei
vários durante minha infância – alguns ainda tenho guardados até hoje, expostos
da estante da sala. Mas os brinquedos eram prêmios de consolação, assim como
guardá-los tornava-se demasiadamente importante. Eram os tesouros que meu pai
deixava para trás, junto comigo, quando a hora dele voltar para sua casa
chegava.
Lembrei dos
almoços em família aos domingos, quando reuniam-se todos os primos, primas,
tios, tias, avôs e avós. Apesar dos meus pais serem separados, era de se
imaginar que tais reuniões deixariam de existir. Pelo contrário, no meu caso:
passaram a existir em dobro. E a cada domingo, um novo dilema: almoçar com a
família do pai ou da mãe? Mesma coisa durante as festas: passe o Natal com um
dos pais e o Ano Novo com o outro, mas qual e quando?
***
Hoje moro em
Foz do Iguaçu com meu pai e minha irmã. Algo que decidi fazer porque havia um
vazio em minha vida que nada em meu apartamento cheio de tralhas parecia
preencher – nem mesmo os amigos que se tornaram como família para mim. E quanto
mais relembrava sobre minha família, mais claro tornou-se a infeliz ironia: por
mais que eu diga que minha família é irritante, competitiva, exagerada,
espalhafatosa, distante ou injusta comigo, tudo que eu sempre fiz nesta vida
foi pensando neles.
É por isso
que visito minha mãe, minha avó e minha coleção de tias em Londrina a cada data
comemorativa importante em que a minha presença não só é importante, mas bem
vinda. É por isso que moro onde moro hoje; porque não queria mais viver sozinho,
e meu pai me ofereceu uma oportunidade de continuar correndo atrás dos meus
sonhos, ao mesmo tempo em que haveria com quem compartilhá-los quando eu chegasse
da faculdade à noite. E é por isso que, na maioria das vezes, eu deixo os
comentários infames e sem filtro da minha tia permanecerem anexados aos meus
posts: é a nossa maneira de permanecer conectados e atualizados uns sobre a
vida dos outros.
Tem dias em
que eu amo a minha família, e outros que nem tanto. São aqueles capazes de te
levantar quando você está se sentindo pra baixo, e de te diminuir com a mesma
facilidade quando percebem que você está se sabotando e desperdiçando seu
potencial com amizades impróprias, relacionamentos infames e carreiras sem
rumo. São aqueles que continuam oferecendo comida para você, só para reclamarem
que você está ficando muito gordo. São aqueles que brigam porque você não liga
o bastante para eles, mas também nunca escutam o celular tocar quando você
telefona.
Às vezes é a
família em que você nasce que te oferece o porto mais seguro da sua vida, e às
vezes é a família que você constrói para si mesmo. Seja como for, são aqueles
que nunca deixam você se sentir sozinho. Nem que seja através de comentários de
Facebook.