sexta-feira, 18 de março de 2016

A resiliência do quilômetro 157


*Escrito em 15 de Setembro de 2014.

Antes de qualquer coisa, eu devo confessar que gostaria muito de ser um homem de uma metáfora só. Acho que se eu baseasse as minhas concepções de vida em apenas uma imagem abstrata, eu não teria essa compulsão por procurar outros significados escondidos em situações adversas. E acho que também seria uma ótima base na qual eu poderia apoiar meu futuro comprometimento por uma garota só, em vez de ficar procurando por outros significados escondidos em relacionamentos imaginários. Mas nada disso realmente tem a ver com o que aconteceu desta vez. Quer dizer, tem um pouco a ver. Porque, bem como já é de costume, não foi apenas uma situação adversa que aconteceu. Foi uma metáfora. E das grandes.

Viajar para Londrina de carro com o meu pai já provou ser uma situação adversa por si só. Mas acho que entre tantas idas e vindas naquele mesmo ano, nosso roteiro de viagem parecia não incluir mais silêncios constrangedores duradouros e discussões que acabavam sendo mediadas por pedágios – porque eu precisava parar para contar moedas pra ajudar a pessoa do guichê a devolver nosso troco. Agora nossas jornadas incluem desde trilhas sonoras personalizadas até lições valiosas de vida. E desta vez quis a vida que eu tivesse uma experiência mais memorável do que apenas descobrir que meu pai e eu temos o mesmo gosto musical. Desta vez a lembrança ia ser sobre uma lição de vida, uma revisão sobre mecânica básica e solidariedade.

- Pai, eu estou com um problema. Na verdade, não é um problema. Mas eu sendo do jeito que sou, tornei algo que não era um problema em um problema. Então é, eu tenho um problema. Não o meu problema em transformar coisas em problemas, mas o problema produto disso.
- É, realmente você tem um problema, filho. Mas diga aí.
- Ultimamente eu andei pensando em relacionamentos. Mas precisamente, sobre não ter um. No começo eu achava que era porque eu gosto de estar solteiro. Ou de estar sozinho. Gosto da liberdade, por mais que não a use tão bem quanto poderia.
- Ok...
- Mas eu gosto de não precisar dar satisfações pra ninguém. De sair pra onde eu quiser, a hora que eu quiser, com quem eu quiser. E eu odeio precisar de outra pessoa. Sabe que eu não sei pedir ajuda, ou reconhecer meus limites, ou admitir derrota...
- Um relacionamento não é isso, Igor. Não é ser limitado por outra pessoa, nem precisar de outra pessoa. É querer estar com outra pessoa. É querer compartilhar essa liberdade com outra pessoa. É saber reconhecer que... Que barulho é esse?!

Um estralo bem alto vindo de dentro do capô faz com que o carro desacelere aos poucos, até obrigar meu pai a parar em um acostamento improvisado de terra que fica entre uma descida para um sítio e uma árvore solitária.

- Era só o que me faltava.
- O que foi isso, pai?
- Eu não sei, Igor. Se soubesse, não teria parado.
- Acho que é de você que eu herdei o meu sarcasmo...
- NÃO COMEÇA!

Descemos do carro. Meu pai abre o capo e investiga até encontrar o problema: uma das velas ligadas ao motor se soltou. Meu pai tenta encaixá-la com a mão e volta para dentro do carro para tentar dar a partida. Outro estralo alto acontece, e a vela é desencaixada do motor em um disparo.

- Estragou a vela.. E não sei porque estou te dizendo isso. Você nem deve saber do que eu estou falando.
- Eu também te amo, pai. Agora me explica direito.
- Sem a vela, o motor não funciona. Se o motor não funciona, o carro não anda. Eu não consegui encaixar só com a mão. A gente precisa de uma chave para isso, mas eu estou sem nenhuma ferramenta aqui. Quer ir a pé, ou prefere voltar pro carro e procurar o recibo do último pedágio?
- Pra que?
- Lá tem um número para ligar em caso de emergências. Nunca me aconteceu nada até hoje para que eu precisasse ligar. Vamos ver como é...

Meu pai liga para o número, que por acaso é um 0800. Números do tipo 0800 nunca me inspiram muita confiança. Isso foi confirmado quando meu pai resmungou algo depois de finalmente conseguir barras de sinal o suficiente para ligar, e descobriu que para ser atendido por alguém, precisava teclar 1. E depois de resmungar por não conseguir achar o teclado do seu telefone para teclar 1, falou com uma atendente que registrou a ligação e disse que já estava enviando alguém para nos ajudar. Independente da minha natureza pessimista e caótica, a ideia de passar um tempo indeterminado parado em um acostamento improvisado em algum lugar nos arredores de Campo Mourão inspirou a minha impaciência a se manifestar:

- Será que eles demoram?
- Acho que não. Não faz muito tempo que passamos por um pedágio. Deve levar uns quarenta minutos, uma hora, por aí...
- Uma hora?!
- Você pode ir a pé se quiser.
- Ok, uma hora...

***

Antes de investigar o motor, meu pai abriu o porta-malas para conferir se estava com suas ferramentas. Deixou sua porta aberta depois que a vela disparou pela segunda vez. Até nos conformarmos de que poderíamos ficar ali por algum tempo, meu pai deixou todo o carro aberto. O rádio ainda estava ligado, tocando as músicas do pen drive que eu trouxe para a viagem. Ouvir música era só o que podíamos fazer enquanto esperávamos pela ajuda. Voltei para o meu lugar no carro, pensando se talvez teria sido melhor ficar em casa, ou se era eu quem tinha o dom de atrair problemas e situações adversas. E continuei aumentando o tamanho do problema na minha cabeça, enquanto meu pai caminhava aleatoriamente pelo acostamento até que um carro passou por nós lentamente e deu ré até se alinhar ao andar do meu pai.

- Ei, você que é o Souza?
- Souza?
- É, Souza. O dono desse sítio que fica nessa descida de terra aqui, do lado daquela árvore ali. Eu te liguei mais cedo sobre um motor de trator.
- Não, não sou eu... Meu nome é Marcio. Eu só estou aqui porque o meu carro deu um problema no motor. Eu e meu filho ali estamos esperando a ajuda chegar.
- Um problema no motor, é? Que coisa. Mês passado mesmo tive que mandar arrumar meu cabeçote. Gastei uma nota só, chê! Aliás, pode me chamar de Gaúcho. Então, como eu dizia, meu cabeçote deu pau e tive que ligar para um conhecido meu que é mecânico. Resolveu na hora, uma beleza de serviço. Só teve que cobrar um pouco a mais porque teve que trocar a peça. Se fosse só pela mão de obra, o cara dava uma maneirada. Aliás, espera aí que eu vou dar um toque pra ele. Quem sabe ele não resolve o problema de vocês?
- Olha, se o senhor puder me ajudar...
- Gaúcho, chê!
- Senhor Gaúcho.... Se o senhor puder nos ajudar, eu agradeço muito. Não estamos nem na metade do caminho da nossa viagem ainda.
- Guenta aí!

Eu fiquei observando a conversa entre o “senhor Gaúcho” e meu pai de longe. Estava ocupado demais tentando fugir dos mosquitos borrachudos que subitamente começaram a agir em conjunto em uma missão de me devorar por inteiro, uma picada aleatória de cada vez. Até preferi deixar só o meu pai falar, porque segundo relatos dos meus amigos, minhas caretas não me deixam mentir sobre o que eu acho das pessoas e das coisas ao meu redor. Sem sombra de dúvidas, conversar com o “senhor Gaúcho” em um acostamento improvisado durante uma tarde exageradamente ensolarada de sexta-feira, e ouvi-lo falar sobre o “pau no cabeçote” que ele sofreu tempos atrás, iria gerar uma careta que talvez o fizesse desistir de ligar para o tal mecânico. Ao desligar o telefone, depois de gritar seu sotaque com ele no telefone, ele continuou a falar com o meu pai:

- Acabei de falar com o Augusto – pelo visto o nome do mecânico era Augusto, e o “senhor Gaúcho” não era muito fã de contextos – e ele vai vir aqui dar uma olhada no problema de vocês. Agora você me dá licença, seu Marcio, que eu preciso achar esse tal de Souza pra ver se consigo vender um desses motores ainda hoje!
- Claro, claro, tudo bem, Gaúcho! Muito obrigado pela sua ajuda!

Meu pai, antes de dominar a arte do empreendimento, é um cavalheiro nato. Em uma pequena troca de falas gritadas com o “senhor Gaúcho”, ele já o considerava muito por ter parado e, mesmo depois de descobrir que não estava falando com o tal Souza, ainda se dispôs a terceirizar outro pedido de ajuda para nós. Quando o Gaúcho voltou para a estrada à procura de outro homem andando aleatoriamente no acostamento que se chamasse Souza, meu pai voltou para perto do carro, onde eu estava:

- Quem diria, não é?
- É, quem diria...
- Onde está seu desgosto por precisar das pessoas agora?
- O que?
- Ué. Você disse que odeia precisar das pessoas. Não levou em conta situações como essa, né?
- Uma lição de vida? Aqui? Agora? Sério?
- Você se preocupa demais com a vida, filho. Tem só 22 anos. Pra que esquentar a cabeça tanto assim? Deveria sair, se divertir, namorar, curtir... Com moderação, claro.
- Isso aqui é uma exceção. Estar parado debaixo do que parece ser a única árvore dessa parte da estrada esperando por dois mecânicos diferentes não tem nada a ver com o que eu estava falando sobre relacionamentos.
- Por que não? Não é você que vive falando sobre relacionamentos, comportamentos, e todas aquelas coisas de psicologia lá? É disso que a gente está dependendo aqui, agora.

Eu estava prestes a recuperar o fôlego que perdi enquanto ainda tentava me defender dos borrachudos para rebater o sermão do meu pai, quando o mecânico do 0800 do pedágio apareceu. Estacionou o carro do lado do nosso no acostamento improvisado, mas demorou uns cinco minutos para descer do carro. Pelo que parecia, estava preenchendo uma série de relatórios sobre a nossa ocorrência. “Até ele preencher toda a papelada que precisa, a gente já foi embora”, resmungou o meu pai. Entre o empreendedorismo e o cavalheirismo, meu pai ainda era um pai. Finalmente, o mecânico desceu do carro, com um sotaque ainda mais carregado do que o do “senhor Gaúcho”, só que puxando para o nordestino.

- Tarde, pessoal. Deu buxa no motor?
- Pois é – respondi, antes que meu pai pudesse colocar seu cavalheirismo em ação. Tudo para ganhar tempo para rebater aquele argumento.

Antes de sequer olhar o capô aberto do carro, o mecânico que ainda não tinha nome nos pediu uma série de informações sobre o veículo, sobre nosso endereço, telefones, e aproveitou para puxar conversa fiada sobre a nossa viagem. Ao revisar a tal queixa sobre a vela do motor que lhe foi passada, logo disse:

- É, ela soltou mesmo. Não vai ter como seguir viagem. Não adianta nem usar a chave pra apertar. Vai ter que mexer no cabeçote, mas não estamos autorizados a mexer no carro. Normas do serviço, para evitar danos ou processos, entendem? Vou chamar o guincho pra vocês, ok? Deixa só eu conferir no GPS aonde vocês estão e... Achei! Quilômetro 157. Beleza, então. Ligo do caminho, pra ir acelerando o processo. Só não sei quanto tempo vai demorar. Mas aguentem aí, ok? Obrigado!

Em algum momento do monólogo definitivo do mecânico, meu pai perguntou seu nome. Eu não me lembro do nome, porque estava ocupado demais sobre como cabeçotes de carro parecem ser mais problemáticos do que eu. Quando ele voltou para a estrada, meu pai voltou ao nosso assunto:

- Não botei muita fé nesse daí não.
- Mas ele é o mecânico da empresa do pedágio.
- O mecânico que nem pode mexer no carro serve pra que?
- Ok, ok. Mas quem você acha que vem primeiro? Já que nossa ocorrência já atraiu a visita de dois mecânicos e um guincho?
- Acho que o Augusto vem primeiro.
- “O Augusto”? Você nem conhece ele. E se não vier?
- Botei fé no Gaúcho.
- Este é você tendo fé na humanidade, para me mostrar como as pessoas precisam de pessoas e tudo mais?
- Exatamente. Onde foi que paramos?

Meu pai deu um sorrisinho irônico que, mais ironicamente, eu estava acostumado a ver só no meu reflexo. Ao fundo, o pen drive no carro estava tocando “Dancin’ Days”. Meu pai começou a dar alguns passinhos de dança, que só serviram para me provocar ainda mais. Estava sendo um dia daqueles, e por mais que custasse a admitir, queria muito que o Augusto chegasse primeiro. Também tinha botado fé no Gaúcho.

***

Antes que meu pai pudesse retomar seu sermão, uma Honda Biz surgiu rapidamente e desacelerou até chegar perto de nós para perguntar se ele era o Marcio sobre o qual o Gaúcho tinha falado. Era o Augusto, armado com sua caixa de ferramentas e maior disposição para ajudar do que o último mecânico. Ao contrário dele, Augusto era quieto e pacato, e analisou as peças do motor com as mãos até concluir que aquela vela tinha concerto sim – era só usar a chave certa, que por acaso tinha ficado para trás na oficina. Augusto montou de volta na moto e avisou “volto já!” antes de desaparecer no horizonte da estrada.

A essa altura já deveria ter passado cerca de uma hora. Não acompanhei o tempo da nossa parada não planejada no relógio, porque estava mais preocupado em matar os borrachudos que tinham conseguido entrar no carro antes que eu o fechasse para me refugiar. Quando vi que as coisas não ficariam mais fáceis do lado de dentro do carro, saí novamente e comecei a andar aleatoriamente em círculos, impaciente pela volta do Augusto, enquanto meu pai pôs-se a caminhar novamente pelo acostamento. Provavelmente estava distraído, porque não viu quando um trator apareceu na entrada do sítio ao lado da árvore solitária, em direção à estrada, e seu motorista começou a falar comigo, inexplicavelmente com outro sotaque carregado, só que desta vez, indecifrável:

- Oxê, o carro de vocês deu problema?
- Deu, deu sim. Mas já fomos socorridos. Apareceu um mecânico, depois que um outro motorista parou para nos ajudar. Enfim, longa história. Mas já estamos bem, obrigado!
- Ah, tudo bem, então. Precisando de alguma coisa, é só descer até o meu sítio ali em baixo. Meu nome é Souza, viu. Agora me dá licença que preciso ir encontrar um tal vendedor que ficou de me mostrar umas peças de trator e até não apareceu até agora.
- Na verdade, foi com ele que a gente falou. Ele foi por ali – e apontei para o horizonte, como quem queria ajudar de alguma forma para retribuir a quarta oferta de ajuda que recebemos desde a parada brusca.

Pouco depois do Souza também desaparecer no horizonte da estrada, meu pai voltou a caminhar pela minha direção e nem reparou que eu estava conversando com o motorista do trator, que por acaso era o Souza que o Gaúcho estava procurando antes de parar para nos ajudar através do Augusto. Foi aí que eu finalmente parei para perceber o quanto estávamos sendo ajudados por pessoas desconhecidas, enquanto eu ainda achava complexo demais pedir ajuda dos meus amigos, dos meus pais, ou até de me atrever tentar algo a mais com aquela garota. E o quanto minha desabilidade de transformar coisas pequenas em problemas já tinha passado do ponto de ser considerada uma simples neurose, para ser algo realmente problemático.

Enquanto eu ligava os pontos da minha própria irreverência, o Augusto apareceu de carro acompanhado pela sua esposa, que ele logo justificou ter demorado para voltar porque precisava buscá-la do trabalho dela. Foram questão de minutos para que o Augusto resolvesse o nosso problema com o apertar de uma chave na vela, cobrasse menos do que eu esperava que ele poderia pedir pelo serviço e pelo transtorno, e nos colocasse de volta na estrada. Alguns poucos metros de volta em nossa viagem, fui obrigado a admitir derrota:

- Ok, você tem razão.
- Sobre...?
- Sobre o que nós estávamos falando antes.
- Que era...?
- Sério mesmo, pai?! Por que será que eu sou assim, né?!
- Ok, ok, é brincadeira. Diga aí.
- Não é questão de precisar das pessoas, nem de garantir liberdade, nem de me sentir melhor sozinho. Talvez seja o medo de acabar preso com uma vela enguiçada em um acostamento improvisado no meio do nada. Talvez seja o medo de investir na pessoa errada de novo. Ou então, talvez seja o medo de não saber para onde eu estou indo, e de querer poupar outras pessoas de se perderem comigo.
- Quanto drama, filho. Não precisa disso tudo. Apenas viva sua vida de um jeito que te traga alegria, e compartilhe isso com as pessoas que você gosta de ter por perto. E namore uma garota de quem você realmente goste, e não te faça ficar questionando essas coisas. Se você está pensando tanto nisso, talvez não seja ela. Mas talvez possa ser se você der uma chance. Eu também não sei. Não sei tudo. Só sei que não adianta a gente ficar só querendo ser feliz. Às vezes a gente precisa tentar algo a mais. E se der errado, eu vou estar aqui para te ajudar. Os seus amigos também. E pelo visto ainda existem pessoas nesse mundo dispostas a fazerem o bem também. Os Gaúchos e os Augustos por aí.
- Ok, pai, você tem razão. Obrigado.
- Obrigado, nada. Faz um favor pra mim. Pega o meu celular aí e liga para aquele número de 0800 de novo.
- Ué, por que?
- Pra cancelar aquele guincho. Se me lembro bem, tem que teclar 1 no primeiro menu que aparecer, e esperar alguém te atender. Mas sem pressa, né? Ainda tem muita estrada pela frente.

Entre imprevistos, enguiços e 110 músicas daquele pen drive depois, nós finalmente chegamos em Londrina. Eu disse ao meu pai que aquela provavelmente foi a melhor viagem que nós já fizemos, e prometi a mim mesmo que faria aquela experiência contar para alguma coisa. Que eu iria tentar mudar algumas coisas, para realmente tornar essa promessa de ser feliz e viver bem em algo real. E que se por acaso eu acabasse preso em um acostamento nos arredores de Campo Mourão de novo, eu já tinha o telefone do Augusto salvo no telefone.

É. Eu vou ficar bem.