quarta-feira, 21 de outubro de 2015

O amor da sua vida curtiu sua foto


Houve um tempo em que o flerte costumava ser artístico. Algo respeitoso, singelo, carinhoso. Um começo poético e inocente para se contar às crianças, anos depois, quando estas perguntassem como os pais se conheceram. Mas os tempos mudaram desde o fim da Renascença e a ascensão da Revolução Sexual, e alguns valores foram perdidos entre uma mudança e outra. Outros foram realocados, mas nunca mais soaram como outrora. E digo isso com pesada poesia porque, ultimamente, não há mais nada de romântico em flertes. E se, hipoteticamente, meus filhos inquietos insistirem em saber como eu conheci a mãe deles, é melhor ter uma história melhor para contar do que, digamos, algo do tipo: “Papai encontrou Mamãe no Tinder. Mas ela não era muito de puxar papo...

Há quem diga que relacionamentos são jogos de poder. E ao contrário do que já acreditei um dia, isto me parece bem mais plausível agora. A única coisa que ainda não consigo compreender ao certo são as regras. Se é que elas existem. Mas se relacionamentos estiverem mesmo baseados em jogos, ganha aquele que, discretamente, jamais demonstrar que está jogando. Achou confuso? É bem mais simples na prática.

Situação #1: O Amor Da Sua Vida (até então) posta uma nova foto no Facebook. Enquanto você está viajando aleatoriamente em sua linha do tempo, encontra a foto dela – linda, perfeita, incrível e, surpreendentemente, ainda intocada por todos os seus outros fãs. Atualizada há cerca de cinco minutos, próxima de você, ainda não há “curtidas” para esta foto. Você:

a) Decide ser o primeiro a “curtir”, inocentemente.
b) Decide esperar para que outra pessoa seja a primeira a “curtir”, já que ela obviamente sabe que você gosta dela e “curtir” imediatamente sua foto demonstraria certo desespero da sua parte.
c) Deixa a foto passar batido por você e volta ao que estava fazendo – mesmo que não estivesse fazendo nada. Aliás, decide até arrumar o que fazer.
d) Salva a foto em uma pasta obscura do seu disco rígido (provavelmente nomeada apenas como “Nova Pasta” para evitar suspeitas) e opta por fazer da foto do Amor Da Sua Vida o seu novo papel de parede do Desktop. Caso a foto não fique muito distorcida, providencia um pen-drive para levar a foto a uma gráfica para encomendar uma dúzia de camisetas com a foto dela para usar quando encontrá-la “acidentalmente” ao rondar a casa dela até o momento em que ela precise sair para sua aula de pilates toda terça-feira às quatro e quinze da tarde.

Particularmente, eu não vivo à mercê das minhas inseguranças. Pelo menos não o tempo todo. Mas já vivi algumas situações interessantes em que algo deste tipo demonstrou um interesse exacerbado da minha parte perante alguém – assim como já descobri interesses alheios em mim através de uma cuidadosa análise estatística de “curtidas” e comentários em minhas postagens mais recentes, voltando até os primórdios de 2011 onde a última moda em flertes resumia-se em “cutucar” alguém. E eu acho engraçado o quanto isto parece bobagem quando tento estipular uma espécie de fundamentação teórica acerca das técnicas e jogos de sedução da contemporaneidade, quando a verdade é única e atemporal: não existem jogos, nem artimanhas, nem esquemas, nem estatísticas, nem nada em se tratando de relacionamentos que indiquem quem está mais afim de quem ou algo parecido.

Nenhum de nós sabe o que está fazendo. E se achar que sabe, está blefando.

Mas nós insistimos com os joguinhos, os olhares, as conversas ensaiadas no espelho antes de encontrar o Amor Da Sua Vida no corredor da faculdade, porque a sensação de poder é o mais próximo que temos de nos sentirmos seguros sobre nós mesmos. Porque demonstrar interesse em alguém é e talvez sempre será o momento mais vulnerável que podemos vivenciar. Como andar na corda bamba sem uma rede de proteção lá embaixo, precisamente posicionada para nos reconfortar caso a recíproca nunca chegue e sejamos forçados a pular para evitar o discurso do “vejo-você-só-como-um-amigo”.


Os constrangimentos também adquiriram sua versão online: é só tirar o “visualizado por último” do WhatsApp e tomar cuidado para não ligar para a pessoa sem querer enquanto estiver babando na foto ampliada do perfil dela. Ah, a humanidade.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

A promessa

Eu tenho uma meta. E ao contrário dos meus outros objetivos mais egocêntricos, este é exclusivamente sobre você. E é bem simples na verdade. Você não pode crescer e ficar igual a mim. De nada.

O que eu quero dizer, realmente, talvez tenha mais a ver com aquela tal maturidade que finalmente me alcançou com o passar do tempo. Por mais que eu mesmo tenha tentado fugir disto por anos. Mas o inevitável aconteceu. Sou algo mais próximo de um adulto emocionalmente maduro do que eu pensava que seria um dia. O que não necessariamente faz de mim um bom exemplo a ser seguido. Mas é o que você tem e, sejamos sinceros, eu poderia ser bem pior.

O que me leva ao que eu vejo em você; não a menina com quem agora eu brigo porque nunca, jamais, em toda a sua pequena existência, lembra de não deixar o tapete no chão do banheiro. Ou de encher as garrafinhas de água – e de não criar uma unidade abandonada de reciclagem com elas no seu quarto. Ou de tirar o lixo toda vez que a tampa não estiver mais fechando. Ou de... Enfim, você entendeu onde quero chegar com isto.

O que eu vejo em você é uma promessa. Da adulta que está por vir. Da mulher que você será. Da profissional, estudante, ridiculamente culta e horrivelmente invejável que você está a caminho de se tornar. E é por isso que eu brigo, grito, implico, faço caretas, comentários sarcásticos e talvez até desnecessários, toda vez que vejo você dar algum passo em falso ou ouço você dizer algo sem pensar. Porque imprudência, instabilidade e irracionalidade são marcas registradas minhas há bem mais tempo do que poderiam ser suas. Então deixe a impulsividade para mim, por favor, e continue se preparando para ganhar a vida lá fora.

Porque a promessa que eu vejo em você é importante demais para ser desperdiçada. Você está prestes a conhecer um mundo muito maior do que imaginou que pudesse existir, e eu quero estar do seu lado nem que seja ao menos para te orientar sobre o que não fazer. O que basicamente seria, bom, quase tudo que eu já fiz até hoje. Você pode fazer melhor. Não. Você irá fazer melhor. Porque você, com seus livros, sua inteligência, sua criatividade, sua essência única e sua capacidade absurdamente impecável, me deixa orgulhoso em tudo que faz. Até mesmo quando faz com preguiça e quanto a isso eu não posso te culpar. Você tem a quem puxar em matéria de procrastinação. Muito prazer.

Enfim, quando eu digo que certas coisas precisam ser comemoradas, é porque o pouco que eu já sei da vida me basta para te dar certeza de que esses momentos não voltam. Independente de como as coisas estejam agora, você sabe que felizmente o nosso mundinho não está tão ruim assim. E que você não está sozinha, até mesmo quando não quer conversar. Fique brava comigo. Entre em um coma induzido por seriados comigo. Conte comigo. Porque agora eu estou aqui, perto de você, para ajudar e protegê-la sempre que você se sentir farta ou perdida. E me escute quando eu digo que hoje, o seu dia, não é uma terça-feira qualquer. É o dia em que, anos atrás, nossa família teve uma grande vitória quando você chegou até nós. Isto merece comemoração. Ou, se preferir, apenas um brinde em especial.

À você, minha irmãzinha. Com quem eu sempre irei brigar, e também com quem eu conto, para que se torne cada vez melhor. Este é o meu papel como irmão mais velho, o mal exemplo, o que aprendeu muito da vida até agora do jeito mais difícil. Com você será diferente, eu tenho certeza. Pra começar, você tem o bom hábito de ler as instruções e as regras antes de começar qualquer coisa.

Mundo real: 0 x Vitória: 1.

domingo, 18 de outubro de 2015

Não há ninguém perto de você


Eu conheci alguém.

Não comentei com ninguém, porque parecia que não ia dar em nada. Foi só uma conversa, num dia desses. Ela me disse “Oi” e eu respondi. Nos falamos por um tempo, e eu pensei que ia ficar naquilo mesmo. Afinal, já vi tantos “Oi”s passarem por mim com promessas de terem algo mais a dizer, sem nunca mais ouvir nada, que já não me comovo tanto com apresentações. Depois de um tempo você até decora um pequeno parágrafo para apresentar-se a outra pessoa, para agilizar o processo. Mas, daí, no dia seguinte, acabamos conversando de novo. E sabe aquelas conversas que duram horas, mas que você nem vê passarem? E por mais que vocês falem, parece que o assunto nunca acaba. E quanto mais você descobre sobre a pessoa, mais intrigante ainda ela fica. Você procura saber mais e mais.. E quando vê lá se foram mais algumas horas.

No dia seguinte eu acordei com um “bom dia” dela. Assim, do nada. Não estava esperando e não respondi por um tempo. Não queria que se tornasse algo daquele tipo. Do tipo que se acorrenta às mensagens de “bom dia” e “boa noite”, e qualquer outra coisa que aconteça no decorrer do dia estará proporcionalmente nivelado com aquele símbolo de mensagem nova pela manhã, e com aquele último som do celular no criado mudo à noite. Avisando que ela já estava indo deitar, mas que, antes disso, pensou em mim. Logo eu, que tenho uma fraqueza por nostalgia, não resisto quando alguém diz que se lembrou de mim.

Aí ela disse que queria me ver. Fiquei um pouco nervoso com aquilo. Não. Mentira. Fiquei muito ansioso com aquilo. Porque a gente vê tanta coisa incerta por aí. Tanta discórdia, tanta bagunça. Mas às vezes no meio do caos, aparece uma saída. E em relacionamentos, é comum acreditar que só vingam mesmo aqueles que estão livres de qualquer expectativa. Os que começam de uma hora para outra, continuam sem aviso ou direção, e que quando a gente finalmente pára pra ver, já se passaram semanas, meses, anos. Vidas em lados opostos que de repente se esbarraram e passaram a evoluir em conjunto. Com um “oi”, seguido de um “bom dia”, até finalmente um “estava pensando em você!”. E agora a gente vai se encontrar... Uau.

***

Caso você nunca tenha relatado algo similar para algum amigo seu em segredo dos seus outros amigos em comum, fosse por vergonha ou desesperança, meus parabéns. Você faz parte de uma raça mais desenvolvida emocionalmente que possui uma compreensão mais sincera e realista dos relacionamentos humanos, independente de atualmente fazer parte de um ou não. Ou talvez você só não tenha espaço de armazenamento suficiente para aplicativos supérfluos no seu telefone, o que também é perdoável. Agora, meu amigo, se você possui a última atualização do Tinder instalada no seu iQualquerCoisa, então chegue mais perto. Vai ficar tudo bem.

Não, eu não conheci ninguém. Na verdade até já conheci algumas pessoas, sim. Mas ao contrário dos anúncios que eu já vi por aí, do tipo “encontrei-o-amor-da-minha-vida-em-uma-rede-social!”, meus amores foram tão eternos e estáveis quanto um sinal de Wi-Fi. Que fique registrado: eu acredito sim que vários casais já se encontraram nos Tinders, Badoos e Pares Perfeitos da vida virtual. E renego todo e qualquer julgamento que possa ter sobre isso. Porque, convenhamos, eu só não tenho a última versão do Tinder instalada porque meu armazenamento não permite. Mas isto não faz de mim nem melhor, nem pior do que ninguém. Apenas humano.

A gente brinca muito sobre isso. Eu mesmo poderia descrever abaixo uma série de contos das minhas próprias desventuras na terra dos relacionamentos imaginários em suas versões para Android. Mas ao contrário do humor – que eu jamais vou negar que existe nessas coisas – eu consigo enxergar o porquê de existirem tantos canais para tentativas de relacionamentos entre pessoas. E é o mesmo motivo que te irrita quando o próprio Tinder parece desistir de você ao mostrar aquela mensagem:

“Não há ninguém perto de você.”

Eu sei disso, Tinder! Por que acha que estou aqui, no fim do meu dia, já deitado e tentando pegar no sono, insistindo em deslizar meu dedo para esquerda e para a direita nas fotos que aparecem em você?! Agora pare de me humilhar ainda mais e carregue logo mais perfis para que eu encontre logo o amor da minha vida. Ou será que vou ter que reiniciar o modem de novo?!

Talvez no fundo eu ainda seja um otimista sobre amor e relacionamentos. Por mais que eu não tenha a menor noção de como essas coisas realmente funcionam. Mas o que leva as pessoas a fazerem o download desses aplicativos, ou a preencherem questionários virtuais sobre quem são e o que procuram, ou a marcarem encontros com pessoas sobre as quais só possuem pequenas notas e pistas de quem são, é porque elas estão tentando se conectar com alguém. Porque não há ninguém por perto e às vezes seria bom ter. Porque parece tão ruim admitir isso?

Eu admito já ter ultrapassado a minha cota de primeiras conversas, relacionamentos imaginários e franquias de internet no celular ao conectar o Tinder em um lugar onde não há Wi-Fi. Eu admito que já estive e muito à procura de alguém, mesmo que fosse só para trocar algumas idéias, ou quem sabe até marcar um encontro. Um jantar, um cinema, um drinque. São necessidades humanas que nós mesmos reprimimos porque parecem indecentes. Sentir-se só, no fim do dia, já com as luzes apagadas e com o resto do mundo offline até a manhã seguinte... Seria bom ter alguém para conversar. Alguém novo. Alguém por perto. É por isso que a gente continua tentando. Nem que seja para ter alguma história para contar depois.

Não, eu não encontrei o amor da minha vida no Tinder, nem em qualquer outra rede social. Mas as mulheres que conheci – e as que não conheci propriamente, também – ainda me inspiram a continuar tentando. E talvez esta seja mesmo a graça: a procura. Porque amor, amor mesmo, não pode ser algo que seja possível perder para sempre caso a nossa internet se desconecte sem querer antes de que eu possa lhe oferecer um coraçãozinho verde. Acho que é algo mais profundo que isto.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Eu ainda estou aqui

Dia desses eu estava na Argentina – e digo isso com aquele ar de rotina, porque Foz do Iguaçu está começando a causar isso em mim – quando entrei em um mercadinho onde costumo comprar vinhos importados à custo de Canção e fui abordado pela atendente que pareceu me reconhecer. Em instantes ela fez questão de me direcionar ao corredor dos vinhos e me apontou uma caixa fechada com seis unidades, pronta para ser passada no caixa. Quando outro atendente veio chamá-la, ela comentou algo com ele sobre mim que, de volta ao Brasil, eu procurei traduzir. Foi algo do tipo “este é aquele rapaz que sempre leva Pinot Noir!”, e me fez pensar em duas coisas. Primeiro: talvez eu não seja mais tão estrangeiro assim na terra das Cataratas. Segundo: agora é oficial – minha bebedeira tem fama internacional.

***

Faz algum tempo que eu não escrevo. E como já era de se esperar, a culpa é do Outubro. O mês das crianças, de Nossa Senhora Aparecida, da mudança para o horário de verão, de eleições a cada quatro anos e, inevitavelmente, do meu aniversário. É a época do ano em que eu indeliberadamente me ponho a tirar um extrato da minha vida e me deprimo quando insisto em enxergar um saldo negativo. Só que ao reconsiderar meus últimos balanços dos anos anteriores, acho que fui bem mais rico do que pude admitir. Visto que nesta última transação, foram subtraídos do meu caixa um emprego, um apartamento, um relacionamento e mais uma cidade. E eu admito que isto faz parte de um investimento a longo prazo para ganhos ainda maiores do que os que já conheci, mas é difícil ser otimista em tempos de crise. Especialmente as existenciais.

***

Levaram quase vinte dias, três cidades e dois países, mas eu finalmente decidi enfrentar minha negação diante de mais uma folha em branco do Word para escrever sobre o que está me incomodando. Eu andei viajando bastante; fui para casa por uns dias e depois, bom, visitei minha outra casa antes de, an... Voltar para casa de novo. E é claro que eu me perdi entre um ônibus e outro, em mais uma daqueles devaneios do tipo “não sei mais aonde é o meu lugar”, etc, etc. E estou driblando os parágrafos de angústia e nostalgia porque já não ficam mais tão bem para alguém da minha idade. Jovem, porém com um nível de maturidade que não permite mais tanta lenga-lenga sobre o passado, mudanças e afins. A vida é o que é e a gente faz o que pode. No meu caso, estou fazendo o que posso para chegar no que quero ser. E esta é toda a metafísica que teremos aqui por enquanto.
Passei por Londrina para visitar a família, depois fui para Cascavel para rever os amigos, até finalmente voltar para Foz do Iguaçu, onde... Onde as reticências ainda dominam. Nada realmente me mantém aqui, e é isso que respondo quando me perguntam “Por que você não volta para [cidade em que estou no momento da pergunta]? O que está fazendo em Foz do Iguaçu?”.

“Nada.”

E é isso que me incomoda. Nem tanto pelo aniversário, ou o calor infernal, ou as tentativas das baratas de darem uma festa surpresa para mim na área de serviço do apartamento. É o nada. Eu não sou a melhor pessoa para lidar com perdas ou fracassos, mas ao menos consigo enxergar alguma metáfora para me reconfortar enquanto eles não passam. Mas quando nada acontece... Nada é insignificante, intransitivo, imóvel. O que eu deveria aprender com isto? Paciência? Já passamos deste ponto, Vida, você sabe disso. Se virtudes são como lições que devemos aprender para crescer na vida, “paciência” seria equivalente aos 25% de falta que posso ter durante o curso.

***

Aí eu voltei para Foz do Iguaçu e tentei recuperar o feito que havia alcançado antes das andanças por aí, ao me colocar na minha trilha de corrida em direção aos 10 km mais uma vez. Às vezes a minha inocência/ignorância me protege de sentir o real impacto das decepções do mundo, mas não desta vez. Desta vez a incapacidade de correr me deixou ainda mais deprimido. E me mantive assim por uns dois dias até resolver tentar de novo, graças ao calor infernal que me obrigou a sair de casa para redescobrir o fenômeno do vento, mesmo que eu mesmo tivesse que criá-lo.
Correndo mais lentamente até o meu percurso habitual, me deparei com outros dois corredores há poucos metros na minha frente. E nem precisei me forçar muito para não tentar competir com eles – como eu fiz daquela outra vez – pois não parecia haver muito fôlego restando em mim para isso. Apenas continuei correndo, lentamente e continuamente, até chegar a um trecho do caminho que eu simplesmente nunca havia conseguido atravessar correndo direto. Eram uns quinhentos metros aproximadamente em que meu corpo automaticamente desacelerava até voltar a andar antes de retomar a corrida em outro trecho, e era algo que se repetia todas as vezes a cada corrida. Exceto por aquela vez, a dos 10 km, em que eu parecia imbatível.

Talvez fosse por isso que eu estivesse tão deprimido, incapaz de continuar correndo, de ultrapassar as outras pessoas, de escrever ou até de abandonar o sonho de fazer disto uma profissão rentável e voltar para casa – seja lá em qual cidade isto seja agora. Eu havia conseguido correr uma distância incrível há pouco tempo atrás, coisa que agora parecia impossível. Bem como o emprego, o apartamento, o relacionamento e tudo mais que eu já havia conseguido antes, que deixei para trás em prol de reconstruir a minha vida do jeito que eu sempre quis – não somente do jeito que podia ser feito até então. A vida não deve ser um “pode ser”; deve ser um “é isso!”. E demorou muito para que eu finalmente entendesse que um “pode ser” não vai me fazer feliz. “É isso!” ou nada.

E, enfim, eu entendi.

Este é o “nada”. São os quinhentos metros em que o meu corpo desacelera por conta própria, porque não dá conta de correr o percurso inteiro. Pelo menos não agora. Por um dia ele conseguiu, mas a vida – que tem seus imprevistos e, convenhamos, seus outros caminhos disponíveis para serem trilhados mas que nem sempre levam adiante na estrada – me tirou da rotina que eu finalmente comecei a me habituar em Foz do Iguaçu. Foi ótimo voltar para casa – para todas elas – mas a estranheza em estar aqui de volta é exatamente o que eu estava certo de que não poderia ser: esta cidade está finalmente sendo familiar para mim.

Passou quase despercebido por mim, mas eu já havia passado daquele trecho do caminho e estava correndo de novo. E só me dei conta disto quando acidentalmente ultrapassei os dois caras que estavam à minha frente até então.

***

De volta em casa, em Foz do Iguaçu, eu parei para me sentir mais contente com todo o caminho que já percorri na vida. E por ser sortudo o bastante em estar apenas há um ônibus de distância de tudo e de todos por quem passei. Porque quando eu volto é como se tempo nenhum tivesse passado por nós. A família ainda acolhe. Os amigos ainda reconhecem. E parte de mim permanece com eles. Assim como eu aprendi quando a moça do mercado argentino já reconhece de longe a minha fama por vinhos finos e descontos quando se compra uma caixa inteira, algumas coisas podem sim ser inesquecíveis.

Eu ainda estou aqui.