sexta-feira, 1 de abril de 2016

Os momentos definitivos II


Eu não sei o que nada disso realmente significa. Só acredito que nem tudo nessa vida possa ser atribuído ao acaso. Por isso essas pequenas coincidências mexem tanto comigo. Mas você não sabe do que eu estou falando. E para entender o que eu quero mesmo dizer, primeiro eu preciso te contar uma outra história. É que antes de qualquer coisa ser escrita eu só queria confessar o quanto ainda não vejo muito sentido em nada disso. Portanto, caso você leia até o final, este acaso é por sua conta.

(2006)

Eu me lembro de ter meus 14 anos e de ser mantido refém em uma fila do “caixa rápido” que não se movia a algum tempo de um supermercado perto da minha casa. Estava em um daqueles pequenos corredores cercados por chocolates e outros supérfluos, com pessoas à minha frente e uma longa fila atrás de mim. Logo, desistir da compra não era mais uma opção. A não ser que eu estivesse disposto a pedir licença para que vinte pessoas se apertassem em um pequeno corredor para que eu pudesse voltar à liberdade, o que não era o caso. Disseram que os sistemas haviam caído e era preciso reiniciar. E é durante momentos assim, de falha existencial, que eu me pego pensando sobre a série de decisões mal-feitas que me levaram a estar preso ali. E então eu a vi. Uma garota linda e que parecia estar igualmente extasiada quanto eu. Ela estava atrás de mim, a duas pessoas de distância na fila. E então ela me viu. Nós não nos conhecíamos nem me lembro de já termos nos visto pela vida afora antes. Mas ela piscou para mim, sorrindo. E antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, outros caixas abriram para atendimento e a fila voltou a andar. Mas ela não foi atendida a tempo para que eu pudesse reencontrá-la na saída do mercado. E eu nunca mais a vi.

(2016)

Sexta feira santa. Feriado nublado. Sozinho em casa e sem muita perspectiva de vida, eu decidi que daria um novo rumo à minha vida a partir daquele dia. Mas o máximo que consegui elaborar foi uma pequena lista de mercado, cheia de supérfluos e bobagens para comer enquanto corria uma maratona de filmes que planejei assistir. Devo ter olhado lá fora umas dez vezes antes de finalmente arriscar sair e rever a vida que existe fora da minha inércia caseira, mas foi o momento mais inoportuno possível para sair. O intervalo exato entre um céu nublado e um mormaço insuportável que geralmente é preenchido por uma chuva brusca. E foi durante este interlúdio chuvoso que eu fui pego desprevenido na metade do caminho entre a minha casa e o mercado.

No meio do caminho percebi que havia uma garota poucos metros à minha frente que também acabou sendo pega de surpresa pela chuva. Mas que, assim como eu, não desistiu de continuar andando, só porque aquela nuvem negra momentânea acima de nós mostrou ser impiedosa. Éramos os únicos à vista insistindo em atravessar aquele tempo, mas acabei perdendo-a de vista quando atravessei uma rua mais à frente. Um pouco de frio acompanhou aquele interlúdio de chuva, mas somente até que eu finalmente pisasse dentro do mercado. Foi o tempo exato para que a chuva cessasse e o sol tomasse seu lugar de volta.

Nada combina melhor com um feriado nublado do que uma lasanha de microondas. Livre de qualquer peso na consciência por não arriscar cozinhar algo mais saudável ou de, convenhamos, comprar algo menos gorduroso. Mas lá estava eu, insistindo na ilusão da fila do “caixa rápido” de novo, quando percebi que só havia duas caixas atendendo. E naturalmente já era tarde demais para desistir ou procurar outro caixa, pois percebi que já formara uma fila atrás de mim. E foi justo quando voltei a pensar sobre a série de decisões mal feitas que tomei para chegar até aquele momento – a caminhada no momento chuvoso mais inoportuno, a lasanha solitária para um feriado chuvoso – quando as caixas chamaram os dois próximos clientes para serem atendidos. Eu e a pessoa que estava atrás de mim que, por acaso, era a garota da chuva. Não a vi entrar no mercado, provavelmente porque estava ocupado tentando me recompor e parecer menos molhado enquanto a ironia do tempo lá fora se abria novamente quando cheguei. Mas lá estávamos nós, eu e ela, visivelmente molhados e sendo atendidos em caixas diferentes. E peguei ela sorrindo de relance depois de fitar as minhas compras sendo computadas no caixa. Porque no meio das suas coisas também havia uma lasanha solitária.

Como era de se esperar, não a encontrei na saída do mercado. Só o que havia lá fora era um tempo que estava subitamente fechando de novo, mas que esperou que eu chegasse em casa antes de começar mais uma tempestade. Enquanto voltava pra casa, fiquei pensando sobre quais são as chances de duas pessoas na mesma rua, serem pegas pelo mesmo pequeno intervalo de chuva à caminho do mercado, para comprar a mesma coisa.

Mas, como eu disse antes, eu não sei o que nada disso realmente quer dizer. Algumas coisas a gente só aprende com o tempo. Mesmo que seja nublado.