terça-feira, 12 de abril de 2016

O pseudo-carpe diem massificado

*Escrito em 13/02/2014.

Eu queria ser uma boa pessoa. Talvez; nem sempre. Mais vezes do que eu deveria, confesso que prefiro praticar pequenos atos específicos de maldade em vês de grandes ações aleatórias de bondade. Como cutucar o ombro de alguém e aparecer do outro lado, ou fazer ruídos incompreensíveis na forma de quem está tentando dizer alguma coisa, só para o coleguinha perguntar "o que?" e ficar com cara de besta quando eu mostrar a língua pra ele. Não, não é algo emocionalmente maduro de se fazer. A verdade é que entre abandonar rancores e tentar ignorar meus instintos imediatos de lógica e de fazer coisas que tenham sentido, eu andei praticando a arte milenar de reconhecer o que uma pessoa emocionalmente madura faria em determinada situação – só para fazer o contrário. Pode não ser muito saudável, e sem dúvidas não deixarei um mundo melhor para os meus netos através disso, mas por ora tem sido deveras libertador. Tudo isso é bobagem, claro. São só palavras digitadas ociosamente por um jovem homem existencialmente entediado em seu blog homônimo de credibilidade questionável. O mesmo jovem homem que já passou algumas manhãs de Sábado revendo as partes musicais dos filmes da Disney no modo karaokê para conseguir cantar junto. Normal.

A questão é que quando a minha maldade, minha imaturidade e meu tédio conseguem se aquietar, eu tenho momentos de redenção em que eu sinceramente desejo ser uma pessoa melhor um dia. É provável que nenhum leitor ou amigo meu já tenha visto isso, porque são momentos tão raros quanto um cometa que passa de raspão na terra, só para dar uma olhadinha no sul da Califórnia, e por pouco não explode o mundo. Quando isso acontece, eu paro, penso, sinto, choro por dentro, absorvo tudo de volta e digo "Só que não!". E mostro a língua. Esse é o tipo de pessoa que eu sou e esses são os absurdos que eu penso. O que me faz sentir melhor é que você, caso não pense parecido, também tem coisas ridículas guardadas em alguma gaveta obscura da sua alma, mas que tem medo de confessar. Por isso você leu até aqui. Ver outra pessoa ser ridícula faz a gente se sentir melhor quanto a nossa própria imaturidade. Claro que isso não justifica a minha inércia emocional, tampouco o mundo explodiria caso eu decidisse mudar. Eu posso mudar. Sou livre pra isso e tenho recibos e comprovantes de renda e residência o suficientes para provar que estou apto para isso. Mas por enquanto... Hum. Não. *mostra a língua*

Mas o catalizador das minhas crises de consciência costumam ser aquelas pessoas que parecem não ser desse mundo. Nada contra as pessoas em geral, mas existem alguns déficits na nossa espécie que instigam quesitonamentos sobre desistir de vez de toda a campanha. Toda vez que eu ando em um ônibus lotado, parte da minha fé na humanidade se perde na multidão que me empurra cada vez mais para a janela, sem aparentar nenhum senso de cidadania referente aos seus sovacos vencidos. Em contrapartida, a questão é que também existem pessoas que parecem estar andando livres e despreocupadas por aí com o único propósito de fazer a gente se sentir mal por não sermos tão saudáveis, bem sucedidas ou - me atrevo a dizer - emocionalmente maduros quanto elas.

Como era o caso do Janeverson, das minhas aulas de redação no ensino médio. Antes de continuar, vamos esclarecer duas coisas: primeiro, o nome dele não é Janeverson e, segundo, eu o odeio sem nenhuma preocupação bio-psico social. Apesar de toda a incoerência, fome e preguiça que compõem o meu ser, eu ainda acredito solenemente que, a partir do momento em que algumas definições na sua vida tornam-se concretas sem mais aquela necessidade de precisarem serem defendidas ou explicadas (como gostar daquele filme tosco, ou daquele cachorro-quente gorduroso da carrocinha do outro lado da rua da faculdade, ou até mesmo daquela pessoa chata e sem graça que você chama de “amigo” ou, em alguns casos, “amor”), é porque você está se tornando uma pessoa madura. Com uma personalidade sólida, ímpar e invariavelmente intransigente. Se é uma maneira distorcida de maturidade ou não, não cabe a ninguém a não ser você decidir. A beleza desse sistema de definições é ter o prazer em justificá-las com um “porque sim” que na verdade quer dizer “porque foda-se você”, mas com a graça e a diplomacia de um “por que não?”. Enfim, a vida tem dessas coisas, e eu odiava o Janeverson. Porque sim/porque foda-se você/por que não?

Mas dessa vez até teve um porquê. O ensino médio também acabou sendo a idade média da minha imaturidade acadêmica, cujo iluminismo se deu na forma daquelas aulas de redação nas tardes de quarta-feira. Eu finalmente havia descoberto algo que eu gostava. Algo que me fazia ir feliz para o colégio, sem ser para conversar com os coleguinhas e/ou mostrar a língua pra eles. E, acima de tudo, algo em que eu era bom. Tipo, muito bom. Tipo, nota 10, mantendo sempre a impecabilidade das dissertações de 25 a 30 linhas e lealdade à temática da semana. E teria sido tudo muito bom, a ponto até de originar um Igor melhor para a história da humanidade, se o Janeverson não tivesse insistido em pesar a minha vida com o seu existir. Maldito Janeverson. Porque por mais que eu fosse bom, e criativo, e engraçado, e dotado de um dom para transcrever uma ironia pura que conseguisse manter-se entre a linha tênue das tradições Machadianas e a contemporaneidade como poucos conseguiam, o Janeverson ainda assim era melhor. Maldito Janeverson! Com sua pinta de bom moço, sua família rica, sua namorada loira de olhos azuis, seu intercâmbio na Europa e seu apartamento megalômano um-por-andar no lado nobre da cidade com vista pro lago. E ele era meu amigo. Talvez não amigo-amigo. Mais pra amigo-inimigo. Amigo/competição. Amigo... Imaginário? Enfim, era até gente bo. Mas por que não odiar, sabe?

E então veio o dia fatídico. O dia em que eu comecei a pavimentar o ódio da estrada que hoje leva ao meu coração frio e calculista (só que não, rá ié ié!). Pra falar a verdade, eu não lembro qual era o tema da redação. Algo sobre a sociedade, o capitalismo desenfreado, a crise econômica mundial e a felicidade. Enfim, “discorram sobre o tema em forma de dissertação argumentativa, de 25 a 30 linhas!” Eu tirei 9,5. O Janeverson tirou 10. Mas não foi pela nota que eu me irritei... Ok, em parte foi pela nota... Droga. Mas foi, principalmente, porque depois de quase um ano inteiro tirando 10 e ter sido nomeado como um exemplo de escritor pelos outros coleguinhas de sala, eu não tive o reconhecimento mor da professora. Quem teve, você me pergunta? Quem teve, você quer saber?! Sabe quem teve?! O Janeverson, é claro! E ela insistiu em ler a redação dele para o resto da sala, para que a gente aprendesse o que era uma dissertação bem feita. Uma redação nota 10. Maldito Janeverson!

Só que algo aconteceu quando ela leu a redação do Janeverson. Mais precisamente, foi durante um trecho que dizia algo desse sentido, mas com aquela expressão que eu jamais esquecerei: “As pessoas buscam um tipo de felicidade prêt-à-porter que foi fabricado pelo capitalismo como algo ideal, porém inacessível. Tão atraente e infame em seu modelo que foi capaz de gerar um distorcido pseudo-carpe diem massificado no modo de vida do homem contemporâneo”. Foi incrível. Era tudo que eu queria saber escrever, completo com toda a técnica, vocabulário, raciocínio e termos frescos em latim e em francês que carregam consigo aquele prestígio irrefutável que só os estudiosos de latim e os franceses conseguem ter. Salvo exceção, é claro, os estudantes de intercâmbio da Europa. Maldito Janeverson!

Até onde eu sei, o Janeverson é uma boa pessoa. Um amigo confiável, um cidadão politizado, um eleitor consciente, um voluntário em abrigos de velhinhos em suas horas vagas, que seja. Mas eu não gostaria de ser o Janeverson. Não é que eu odeie o Janeverson a ponto de pegar ódio de pessoas boas, ou carregue comigo um orgulho do tamanho do mundo que é incapaz de aderir a características que vão contra a minha natureza rancorosa – o que certamente explicaria porque qualquer tentativa de mudança poderia ocasionar em um novo big bang. Apesar dos pesares, eu gosto de ser quem eu sou. E já não me sinto mais tão incomodado pelos Janeversons que cruzam o meu caminho. Porque por mais que eles sejam bonitos, inteligentes, bem sucedidos e emocionalmente maduros, daqui até a eternidade só haverá um Igor... Mentira. Tem Igors aos montes por aí. Mas outro Igor como eu, jamais haverá. Eu já sonhei em ser um Janeverson, mas ser o Igor é tão mais divertido... Não é?

Maldito Janeverson...