Eu fui uma criança de sorte.
Por um lado isso é bom, mas por outro significa que tenho muitos anos de
constrangimentos e decepções a serem sentidas, amarguradas e epicamente
superadas ainda por vir. Tudo começou porque, ironicamente, eu tinha que fazer uma
coisa chata de adultos: ir ao banco buscar o cartão de uma conta-corrente que
precisei fazer para receber o salário do estágio e gastá-lo com... Bom; criancices.
O que deixa tudo ainda mais irônico. Eu já disse que a ironia me persegue? Tome
cuidado quando estiver comigo, pois estará sujeito a alguma situação digna de
ser recontada aos risos em uma mesa de bar, ao mesmo tempo em que estiver
bebendo para tentar amortecer a experiência.
Mas está
quase tudo bem comigo. Sempre está quase tudo bem comigo, na verdade. E dessa
vez o “quase” envolveu meus problemas
típicos com portas giratórias de banco, alienação acerca de quais dos meus
pertences travam o detector de metais (“Senhor,
tenho algumas moedas no bolso que, por acaso, está furado e fez com que as
moedas se perdessem dentro da minha calça. Juro que é só isso que está travando
a porta. Não vou assaltar o banco. Estou em horário de almoço; não tenho tempo
pra isso.”) e a espera infame pela chamada da minha senha, enquanto outras
pessoas que chegaram depois de mim misteriosamente conseguiam ser atendidas
primeiro. Vocês estão dando pro dono do banco ou coisa parecida? Eu só vim
buscar um cartão, caramba!
Quando me
chamaram o atendente me deixou em suspense ao não achar o bendito cartão, até
que a outra moça que fica do lado de fora da parte dos atendimentos o encontrou.
Isto me lembra: apesar dos pesares, eu preciso ir mais ao banco. O crachá
daquela atendente bonitinha estava virado e não vi o nome dela; terei que
voltar para descobri-lo. Isso só pode ser considerada uma atitude de stalker se eu não tiver nenhuma
interação com ela antes de pesquisar quinze redes sociais diferentes à procura
dela. Eu nem escolhi o nome dos nossos filhos ainda, então relaxem... Enfim,
estou me perdendo no que queria dizer. Coisa de criança também; ficar puxando
um assunto atrás do outro sem concluir nenhum.
Depois que
moça achou o meu cartão, o outro cara me disse que era só desbloqueá-lo em um
dos caixas eletrônicos da agência, o que teria sido fácil, simples e normal
demais para incentivar alguma filosofia da minha parte acerca do que eu estou
fazendo com a minha vida. O problema foi que eu não lembrava a minha senha, e
pelo visto depois que você insiste em querer saber mesmo assim três vezes
seguidas, o cartão bloqueia. Voltando ao guichê para pegar outra senha para
atendimento, eu já estava me sentindo incapaz o bastante, visivelmente abatido
com mais uma demonstração de fracasso da minha parte sobre as coisas da era
digital, o que me deixou particularmente sensível diante do diálogo que tive em
seguida quando outra atendente me chamou.
- Como posso ajudá-lo?
- Então, eu acabei de pegar um cartão novo da
minha conta, mas quando eu fui tentar desbloqueá-lo ali fora...
- Uhum, uhum, você bloqueou ele, é? – disse ela
com um tom indiscutivelmente infantilóide, como se estivesse falando com uma
criança que pegou o cartão de dentro da bolsa da mãe sem ela ver e fez arte com
ele.
- É.. Sabe, eu achei que lembrava a senha,
mas pelo visto...
- Uhum, uhum, tudo bem, tudo bem. Isto
acontece, não é mesmo? Me dê o seu cartão e vamos resolver isso já já, ok? – disse ela
novamente com aquele tom acusatório e acolhedor ao mesmo tempo, que questionava
minha maturidade, mas ao mesmo tempo a aceitava, visto que eu era só uma
criança e não sabia mexer com cartões.
- Muito bem, agora vamos cadastrar uma senha
nova, ok?
– disse ela, fazendo uma pausa em sua fala, sentindo que eu precisava de um minuto
para entender o que ela tinha dito antes de completar as instruções – Só que dessa você precisa se lembrar dela,
viu?
Feito isso,
eu já estava preparado para minha nova caminhada da vergonha de volta ao caixa
eletrônico, quando ela completou:
- Se você tiver mais algum problema, pode
voltar a falar comigo, viu? Nem precisa passar pela moça da recepção pra pegar
senha. Só volte para a minha mesa e daremos um jeito, ok? – disse ela
em seu último sermão, antes de me liberar para voltar a brincar de gente
grande.
Depois de
conseguir decifrar o menu criptografado de opções em busca da minha autonomia
financeira, eu finalmente consegui desbloquear o cartão. A ironia final para
coroar a situação foi descobrir que tudo aquilo tinha sido relativamente à toa:
não havia caído dinheiro na conta ainda. Quando eu disse que existe um lado
ruim em ter sido uma criança de sorte, me refiro a todos aqueles anos que
passei em casa assistindo desenhos enquanto outras crianças da minha idade
estavam brincando lá fora, raspando joelhos quando tentavam escalar um muro ou
quebrando braços quando tentavam aprender a andar de bicicleta. Eu não fiz nada
disso, mas ainda me lembro de ter assistido toda a série de filmes produzida
pela época da renascença da Disney em meu quarto confortável e fechado.
Eu demorei
muito para realmente sentir o mundo ao meu redor. Levei anos para descobrir a
vida e entender que se você não lembrar imediatamente da senha do seu cartão de
crédito, é melhor tirar a dúvida enquanto está sendo atendido do que se sentir
diminuído emocionalmente por um caixa eletrônico. Sim, eu sei que estou
exagerando; o que tem a ver não ralar o joelho quando era criança com não saber
como um cartão de crédito novo funciona? Simples. Crianças que começaram a
experimentar o mundo cedo, logo aprenderam aos poucos como ele funciona e como
devem se portar diante de adversidades. Só não sei dizer se isso também ajuda
futuramente a memorizar uma senha de letras e números aleatórios de seis
dígitos, mas sem dúvida não deve atrapalhar.
Naquele dia
eu senti que não foi só o cartão que quase ficou bloqueado. Minha infância
ficou bloqueada, limitada a canções originais de “Aladim” ou “Hércules” e outros
grandes sucessos de quem foi feliz por ser uma criança com videocassete em casa
durante os anos 90, mas que teve o desenvolvimento de outras habilidades sacrificado
por isso. Tudo bem que também aprendi muito com os desenhos; é bem provável que
minha primeira experiência com a morte tenha sido quando o Mufasa morreu em “O Rei Leão”,
deixando Simba sofrendo por anos devido
ao um luto mal- elaborado. O que, ironicamente, veio a ser o tema do meu TCC em
Psicologia há alguns anos. Isso me faz pensar que nem tudo está perdido. Que
apesar de ainda ter dificuldades em conviver com adultos, e até mesmo a me
comportar como um, ainda há tempo de aprender. Há, inclusive, atendentes
bonitinhas de banco que estão lá só para ajudar as pessoas que tem problemas
com caixas eletrônicos.
Enquanto
isso, meu lado criança permanece intacto e ativo até hoje, criando situações
irônicas capazes de me fazer rir da vida mesmo quando isso não parece ser
possível, e me desafiando a aprender cada vez mais a como lidar com as coisas
da maneira mais emocionalmente madura possível. Isto claro, desde que eu acertei
em desbloquear este lado em prol do que poderia ser inspirado por ele. Seja em
relacionamentos, seja no âmbito profissional, ou então apenas para me animar
quando eu me olhar no espelho daqui alguns anos e ser refletido com cabelos
brancos, óculos de fundo-de-garrafa e aparelhos de surdez. Porque eu fui uma
criança que não só sentava perto demais da televisão, como também deixava o
volume muito alto.
Algumas
pessoas parecem sentir quando é a hora exata de deixar de ser criança, sem
considerar que talvez seja possível manter um equilíbrio entre a infância que
você teve e a maturidade que você quer alcançar. E então existem outras pessoas
como eu, que tem brinquedos expostos na estante da sala e passam o Sábado de
manhã assistindo a filmes da Disney no YouTube
– com a minha própria internet, no meu próprio apartamento, usando a minha
própria xícara com o café que eu mesmo fiz. Da última vez que folheei meus
álbuns de fotos antigas, pude perceber pelas minhas caretas que eu fui uma
criança irônica desde sempre. Se minha vida está indo bem, meu coração está em
paz e minhas contas estão sendo pagas em dia, por que isto deveria mudar agora?
Sou um
adulto cheio de infantilidades, mas ao menos são criancices funcionais.
*Escrito em 01/02/2014.