segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A última garota certa


Só para constar: tudo o que eu queria era um jantarzinho a dois. Mas você não colabora...

***

Nada ilustra a coleção de erros que eu já fiz nessa vida de maneira tão clara como a minha lista de contatos do WhatsApp. Foi o que pensei durante o auge do meu desespero existencial silencioso que costuma surgir do tédio das noites de domingo, enquanto descia a barra de rolagem da agenda do telefone e revisitava mentalmente as razões pelas quais sequer havia salvo os números de algumas pessoas que, como o tempo veio a demonstrar, não fizeram jus a demonstrações do tipo “precisando é só chamar” ou “estarei sempre aqui” que costumávamos trocar. Talvez seja apenas mais um dos efeitos colaterais dos vinte e poucos anos, juntamente à instabilidade financeira e o pavor terminal por qualquer compromisso. Mas é algo que me pareceu especialmente explícito dessa vez, considerando o quão vulnerável eu ando me sentindo nesses últimos dias.

A mudança para Foz do Iguaçu há meses perdeu seu ar de novidade. Já me habituei com as ruas, a hora certa de atravessar certos cruzamentos, os nomes de alguns bairros – embora não necessariamente saiba como chegar até eles – e até mesmo a saudade da minha vida antiga se aquietou de modo que lembrar dos meus amigos e das idiotices que fazíamos juntos não acarreta mais em nostalgias chorosas. E talvez seja esse novo e saudoso estado que a minha saudade atingiu que tenha aberto brecha para outros sentimentos inflarem. Como me conheço bem, era de se esperar que a frustração crescente fosse a primeira da fila. E digo “crescente” porque, enfim, já construí um pequeno histórico por aqui no qual posso me amparar para dizer que as coisas e as pessoas deixaram de ser assustadoramente novas e passam a ser demasiadamente insossas.

Um eco de outono passou pela cidade esses dias, alertando quem estivesse prestando atenção que o verão está chegando ao fim. E se tudo der certo, logo estaremos na estação em que é totalmente aceitável não sair por aí em trocar de ficar em casa debaixo das cobertas com um filme, uma bebida quente e – eis o ápice da frustração – alguém especial do lado. Porque muito do que eu associo ao inverno são lembranças terrivelmente solitárias, quando ter “alguém especial” ao lado parecia ser a solução de todo a frieza que me cercava. E que me levam a sentir falta, particularmente, dos lugares comuns que todo relacionamento possui. O cineminha espontâneo, as mãos dadas no shopping, as conversas sussurradas na cama, até o clássico jantarzinho a dois. Não sei dizer se realmente gostaria de um novo relacionamento hoje, mas aquele ar denso e garoa leve que tomaram conta do calor habitual da cidade me lembraram do quanto eu gostaria, só por uma noite, revisitar um lugar comum com “alguém especial”.

Desde que aprendi a cozinhar penso em como seria escolher um cardápio especial para preparar para “alguém especial”. Provavelmente uma massa... Acho que romance combina bem com massas. E um bom vinho para acompanhar, que deixaria gelando um pouco enquanto preparasse a comida. Arrumaria a mesa de um jeito que demonstrasse o quanto tudo foi pensado para que essa noite fosse mesmo algo diferente. Guardanapos dobrados em triângulos isósceles à esquerda do prato, taças de vinho à direita. Luz de velas? Talvez. É importante para mim pensar nesses detalhes. Porque é bom saber que a vida, o tempo e os relacionamentos mal resolvidos que ainda residem na agenda do meu celular ainda não anularam por completo o romance que há em mim.

Romance, inclusive, que costumava ser sinônimo da minha personalidade em vez de antítese dela. Foi o que todos aqueles relacionamentos fracassados que invariavelmente ainda ocupam espaço não só na memória do meu telefone, mas no meu coração também, me ensinaram. Rompimentos, decepções, vácuos e esquecimentos que me deixaram bem mais propenso à racionalidade de que criar expectativas não só é desaconselhável como perigoso. E que a fantasia de encontrar alguém e acreditar, apesar dos pesares, que pode dar certo é mais do que infantilidade; é ridículo.

Então eu me lembrei do quanto me tornei imune ao ridículo há muito tempo. E como não há mais nada que eu deixaria de fazer se eu sentisse mesmo vontade. Afinal de contas, foi a impulsividade que me motivou a seguir um sonho, e que me trouxe até aqui, e que já criou tantas histórias nessa cidade ao ponto de acabar com o meu medo e de, enfim, dar espaço a um pouco de tédio existencial de novo. E aí eu fui para a cozinha...

***

Repassando minha lista de contatos mais uma vez, confesso que fiquei triste por um momento. A janta estava pronta. A mesa estava posta. O vinho estava aberto. Só não havia companhia. Talvez não precisasse ser “alguém especial” esta noite. Porém não alguém tão desprovida de mitologia e personalidade também. Mas só o que parecia haver no meu celular eram contatos que provavelmente não aceitariam o convite por desinteresse, ou não poderiam por geografia ou outros planos que já tivessem feito. E ao colocar-me no lugar comum que tanto sentia falta, eu percebi que reconstruí-lo foi bom para matar a saudade. Mesmo que estivesse desacompanhado esta noite, ainda foi bom para relembrar algo ainda mais importante que pensei ter abandonado há anos. O sonho de cozinhar um jantarzinho a dois não só para alguém especial, mas a garota certa. A última garota certa que eu irei conhecer.

E foi bom perceber que depois de anos eu finalmente aprendi a cozinhar para dois. Como eu poderia deixar de acreditar justo agora?