sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O primeiro dia


De todos os tipos de insegurança pelos quais alguém pode suar frio, talvez nenhum supere aquela em especial que surge entre fechar a porta de casa e abrir a porta da sala no seu primeiro dia de aula. É o equivalente emocional ao desbravamento do Novo Mundo, mas em vês de índios enfileirados tentando entender o que são aquelas embarcações ancorando em suas terras com homens estranhos afirmando que tudo ali pertence a eles agora, a visão é de outros alunos consideravelmente mais inseguros do que você que chegaram antes e conquistaram o privilégio de assistir enquanto outros tentam disfarçar seu nervosismo ao discernir qual é a carteira mais disfarçada para se sentar. Isto é, enquanto tentam disfarçar sua própria ansiedade quanto ao coleguinha novo ao lado.

Eu sempre defendi a velha teoria sobre como o começo das coisas é sempre a pior parte, salvo em relacionamentos – sendo estes a única exceção em que a insegurança é, por natureza, constante. Mas em terras desconhecidas cujas quais nos colocamos à prova para conhecer, seja o emprego novo em que ainda não decoramos os nomes de todos que trabalham no nosso setor, ou o primeiro constrangimento a ser sentido nos corredores do ensino superior, passando por veteranos que facilmente enxergam nossa desorientação ao procurarmos a nossa sala, a insegurança é mais do que um mero sentimento; é um estilo momentâneo de vida.

Quanto a mim, por mais que tivesse contado os dias para que a faculdade começasse, insegurança foi o único sentimento que não senti. A ansiedade para começar, a determinação para me focar melhor desta vez e os sonhos que visava desde o momento em que fiz a matrícula foram o que me fizeram companhia durante o verão. Nem mesmo dar duas voltas no campus e ter que pedir ajuda a um cara da manutenção para achar a minha sala me desanimou. Eu só me sentia feliz por estar ali. Recomeçando.

Mas a insegurança certamente não iria falhar desta vez. O nervosismo nos primeiros dias de aula é diretamente proporcional ao conforto que você sente nos últimos dias, quando já se é obrigado a, segundo o filósofo Leonardo, ter que aprender a dizer adeus a tudo que demorou tanto para ser reconhecido, conquistado e habitual. E talvez ninguém mais naquela sala saberia disso tão bem quanto eu, independente do quanto estivessem se sentindo desajeitados ou perdidos. Primeiros dias são assim e eu sei bem disso. Até agora eu tive três.

A primeira vez, em 2009, e a segunda, em 2010, nunca pareceram tão vivas quanto nesta semana. E me fizeram perceber que por mais que eu gostasse de me imaginar como igual àqueles que estavam passando pelos corredores de uma faculdade pela primeira vez, e por mais que nunca tivesse passado da secretaria acadêmica até então, tudo aquilo já parecia terrivelmente familiar para mim. Os deboches dos veteranos, os rumores sobre trotes nos calouros, as placas orientando como chegar à sala que nunca realmente ajudam... Eu já havia passado por tudo isso antes. O que, teoricamente, deveria me ajudar a sentir um pouco mais de segurança dessa vez. Só que não.

Na verdade não há nenhum estigma real em cursar uma segunda faculdade. Em trocar de cursos e dar um novo significado à sua carreira e, por conseqüência, à sua vida. Claro que será cansativo ter prazos para entrega de trabalhos de novo, bem como as alegrias e dramas de conviver diariamente com uma turma de acadêmicos que invariavelmente irão se conhecer, festar, brigar, reatar, brigar de novo, passar reto uns pelos outros por um tempo até se reatarem de novo porque já é o último ano e será preciso sair dali de bem com todo mundo, porque “tudo valeu a pena”. Já passei por isso, briguei com meio mundo só para acabar festando com todos nos últimos dias, e usei tudo isso no meu discurso na formatura após ser eleito o orador da classe. É o ciclo da vida. Acontece...

E depois de tudo que vivi antes de chegar até aqui, até o fatídico primeiro dia, eu sinceramente pensei que estava imune à insegurança. E que poderia, inclusive, ajudar quem estivesse mais quieto ou acuado a se enturmar melhor porque não há nada o que temer nesse Novo Mundo. A não ser, talvez, a pessoa que você irá se tornar daqui em diante. Porque como todo mundo que já sobreviveu aos pagamentos de carnês de uma formatura de ensino superior, nada definitivamente será como foi antes desse primeiro dia.

Não me entenda errado; eu estou feliz. Feliz e grato pela segunda chance de ir atrás de um sonho que abandonei por outro que, no final das contas, fez jus ao título de “segunda opção” conforme aquele teste vocacional que fiz em 2008 resultou. Mas estar aqui, em uma sala de aula de novo, cercado de pessoas que eu ainda não conheço e de um Novo Mundo que ainda não entendo bem como funciona, me fez sentir algo que ainda não havia sentido desde que cheguei em Foz do Iguaçu. Algo, inclusive, que não sentia há bem mais tempo que isso, em outra cidade e em outra vida. Algo que me fez duvidar de tudo que passei para chegar até aqui, e tudo que seria capaz de fazer dali em diante.

Eu me senti sozinho...

***

E foi só depois que eu voltei para casa, para a família com quem eu moro hoje, com a gata insuportavelmente inquieta que insiste em me morder desde o momento em que eu entro pela porta, e o wi-fi começou a receber inúmeras mensagens dos meus amigos de longe que queriam saber como havia sido a aula, que eu percebi o quanto a insegurança do primeiro dia pode até ser invariavelmente inevitável, mas é definitivamente passageira. Algumas pessoas daquela sala já até sabiam o meu nome... Eu acho. Bom, eu sei o de alguns. E de três coisas eu tenho certeza: é só o começo, eu não estou sozinho e, definitivamente, faltou um copo de uísque nos meus últimos primeiros dias.

Eu vou ficar bem.