*Escrito em 26/01/2014.
Em conversas com algumas pessoas que
se inspiraram com meus surtos de ócio criativo e queriam saber de mim como era escrever
coisas tão sem sentido, mas ao mesmo tempo tão dolorosamente profundas e
sinceras, eu disse que era como jogar o lixo fora.
- “Jogar o lixo fora?!”
- É!
Pensa
comigo: Você vai no supermercado e compra um bolo, ok? Aí você chega em casa,
arruma a mesa com todo o cuidado, coloca a cafeteira pra trabalhar, e muda o
status do seu WhatsApp pra “Comendo bolo, oh yeah”. Então você senta
na mesa, serve um café, corta uma fatia do bolo e imediatamente sobe aos céus
do orgasmo estomacal. A primeira mordida te dá aquela expressão de “Esperei por você a vida inteira!”, coisa
que algumas pessoas já não te provocam mais, só a comida mesmo. Aliás, acho que
depois de algum tempo, a gente deixa de sentir amor com o coração e só sente
paixão com o estômago, mas isso é assunto para outro amanhã.
Enfim... As primeiras fatias daquele bolo foram
deliciosas, saborosas, salivantes. Aí você guarda o resto daquele bolo na
geladeira para comer mais algum outro dia, só que você se esqueceu de que essa
semana era o prazo final para entregar aquele trabalho sobre o narcisismo
segundo Freud, que tem reunião no trabalho a respeito das novas estratégias de
divulgação dos projetos de assistência social da prefeitura, que você precisa
retornar as três chamadas não atendidas da sua mãe que ficou preocupada com
você ontem depois da sua consulta no dermatologista sobre aquela mancha
estranha no seu pescoço, mais a chamada daquela garota que te chamou pra sair de
novo justo enquanto você estava no telefone com a sua mãe e esqueceu de mandar
mensagem perguntando como ela estava só pra não perder o contato, e que você
ainda precisa passar no mercado a caminho de casa porque acabou o detergente
para lavar aquela louça do jantar que você organizou com os amigos na sua casa
anteontem, e que não lavou porque ainda tinha espaço na pia para renegar a
louça do seu café de hoje de manhã.
Quer dizer,
aonde você encaixa o resto daquele bolo nisso tudo? E o bolo não espera pela
gente. Muito pelo contrário, ele se transforma em uma bomba relógio na sua
geladeira que irá autodestruir sua deliciosa, saborosa, salivante consistência
exatamente quando você se lembrar da existência dele de novo e abrir a porta da
geladeira só para se deparar com seus restos mortais em decadência dentro
daquele tuppaware da sua mãe – que
você também se esqueceu de devolver e sempre dá uma desculpa quando ela liga
cobrando, mas que agora vai ter que jogar fora e ser condenado pelo resto da
vida por ser “irresponsável” com tudo
que a mamãe te empresta.
Acontece,
então, uma revolução dentro de você. Aquela calma que só o desespero dá, e que se
multiplica e passa a tomar atitudes por você depois de borbulhar toda a raiva,
ansiedade, angústia, tesão desperdiçado e tristeza por ter chego mais uma noite
de sexta e, em vês de sair, você levanta a bandeira branca e decide ficar em
casa porque não há balada no mundo que compense você deixar a sua cama para
trocar de roupa, se meter no meio de uma multidão de pessoas bêbadas e música
alta, e ainda se agarrar na esperança de que aquele dia ainda pode valer a
pena. “Vai que eu conheço alguém...?”.
Mas como até o presente momento nunca “Foi
que...”, você desiste.
E aí você
vai até a geladeira de madrugada para pegar uma garrafa d’água e reencontra
aquele tuppaware, só que sem nenhuma
lembrança do que há dentro dele. E então você o redescobre: o bolo delicioso,
saboroso, saliente que você comprou mês passado, comeu três fatias, e deixou
perdido no vórtex de esquecimento aleatório e caos transitório que compõe a sua
vida. E às três e quinze da manhã da madrugada de domingo, você joga aquele
bolo fora, tenta ressuscitar a tuppaware
da sua mãe para evitar mais um sermão da montanha com o detergente que você
milagrosamente se lembrou de comprar, e volta para a cama se sentindo
ridiculamente vitorioso.
O que eu
quero dizer com tudo isso? A vida é a vida mesmo; a minha tem dessas coisas de
esquecer comida na geladeira porque passei a semana alternando entre reuniões
de trabalho, filas de banco, mensagens de amigos ressentidos porque esqueci de
respondê-los, consultas médicas a respeito do que sobrou da minha saúde
precária, e telefonemas da minha mãe me xingando porque eu não tenho paciência
com ela, até que ela mesma perde a paciência e desliga na minha cara. Se sua
vida não for parecida com isso, certamente tem outros problemas que te fazem
esquecer que a semana tem cinco dias que passam voando, que muita coisa ficou
sem ser resolvida, e que aquele bolo continua guardado na sua geladeira,
envelhecendo e apodrecendo como a nossa própria paz de espírito, que é testada
pelo tempo a cada boleto bancário que a gente tem que reimprimir porque o
boleto de verdade se perdeu pelo correio.
O sabor do
bolo pode variar: pode ser aquele amor perdido que você ainda não superou,
aquela paixão arrebatadora que te roubou noites de sono e tentou te sufocar
durante a noite com um travesseiro de saudade, ou pode ser de raspas de chocolate
mesmo. Agora imagine você jogando esse bolo no lixo, e jogando esse lixo fora
da sua casa. Fora da sua vida. É, no mínimo, libertador. Por um milésimo de
segundo, aquele lixo representa o fim da repressão de todas as dificuldades da
sua vida, que parecem finalmente terem entrado em uma convergência milagrosa e
que você, no trocar de uma sacola de lixo, conseguiu se desprender e recuperar
aquela sua paz de espírito que você achou que tinha perdido, junto com as
chaves do carro e aquele maldito boleto bancário que você teve que reimprimir.
Escrever para
mim é isso. É tirar alguns minutos do caos que domina a minha vida para fazer
uma limpa na geladeira e jogar pedaços de bolo fora. Porque eu como muito bolo
– metaforicamente falando, por enquanto – mas nem sempre lido com as sobras de
maneira muito direta ou saudável. E guardo os restos mortais bem no fundo da
geladeira, para lidar com isso em qualquer outro dia que não seja hoje. É como
bloquear aquela pessoa do Facebook
porque você ainda não quer lidar com o fato de que vocês não andam mais de mãos
dadas, não trocam mais mensagens de madrugada, nem se cumprimentam quando se
encontram no estacionamento do shopping. Mas quando você tira o dia para limpar
a geladeira, e lidar com o fim daquele relacionamento, ou chorar tudo que tem
pra chorar por aquela pessoa que simplesmente não vai ser sua, você finalmente
confronta o fato de que as sobras daquele bolo não são mais comestíveis, que
nada daquilo ainda tem a algo a ver com você, e que o lugar daquilo é no lixo.
Claro, este
blog não é um lixão e vocês não estão aqui chafurdando nos restos mortais da
minha vida pessoal, amorosa ou ilusória. Este blog é uma obra verdadeiramente
fictícia, cujo objetivo é me livrar de toda bagagem emocional que eu não quero
mais carregar, e me emagrecer de todo rancor, insatisfação e dúvidas que
costumam me inchar e me impedem de entrar nas minhas calças novas. Caso você se
identifique com alguma coisa por aqui, e isto te inspire a mudar sua vida ou –
digamos – limpar a sua geladeira, fico feliz por você. Estamos todos juntos
neste mundo torto e incorrigível, esperando por dias mais felizes, pela vitória
na copa do mundo, e por – digamos – pedaços de bolo que não nos decepcionem.
Enfim, é por
isso que eu escrevo. Aceita mais um pedaço?