*Postado originalmente em 20/01/2014, mas a
lei ainda é vigente.
Nós vivemos em uma era de coisas.
De querer cada vez mais coisas. De gostar de pessoas por causa de coisas. De
tentar usar coisas para ocupar o vazio deixado por outras coisas. Por outras
coisas de outras pessoas, que acabaram indo embora por causa de, bom, outras “outras coisas”. E quando isso acontece,
o valor que associamos a essas coisas aumenta porque passamos para elas tudo
aquilo que aquelas pessoas significavam, mas que agora não estão mais aqui para
matarem a nossa saudade. Só o que sobraram foram as coisas, que de certo modo
se transformam numa espécie de tesouro deixado para trás por elas. Tesouros que
não conseguimos jogar fora, nos auto-censurando ao sequer pensar nisso pois,
afinal, o que fulana iria pensar de mim se me visse jogando isto fora? É como
se eu estivesse jogando fora o resto de esperança que ainda tenho em nós.
Engraçado como nos livramos tão facilmente das pessoas, enquanto as coisas que
ficam – as coisas que realmente podem ser jogadas fora – permanecem por muito
mais tempo. Jogadas em cantos obscuros da casa e do nosso coração, mas que
fingimos não ver porque – por algum motivo – ainda não estamos prontos para
lidar com isso. Como se coisas precisassem
ser tão complicadas assim.
Baseado
nesse espírito assombrador de ex-pessoas e as coisas que deixaram para trás,
foi criada a lei do desapego. Desenvolvida em meados do século XXI por jovens
que recém venceram o desânimo de voltar a viver – e reaprenderam a envolverem-se
com, bom, coisas novas – e decidiram levar a famosa faxina de primavera a um novo
patamar: o pessoal. Vão-se as velharias, ficam as novidades. Vão-se as
amarguras, ficam os sorrisos. Toda vez que a minha mãe vinha para Cascavel e se
hospedava na minha casa – e tomava posse do meu quarto porque a cama era melhor
e, bom, porque aparentemente ela ainda tem essa autoridade, independente do endereço
– ela fazia “A faxina”. A limpa de
peças antigas do meu guarda-roupa que não servem para mais nada a não ser
ocupar espaço, acumular ácaros e atrapalhar as peças de roupa dela que
precisavam de cabides mais do que o meu museu de vestuários precisava de
exposição. E como sempre tive que suportar a partilha de camisetas que tenho
desde os tempos apocalípticos da pré-adolescência, calças que continham em si
mais esperança de que eu ainda pudesse caber nelas do que uma real perspectiva
dos meus novos e avantajados quadris de homem, e sapatos que... Ok, não havia
nenhuma justificativa para continuar guardando aquele boot antigo com os cadarços estraçalhados a não ser pela preguiça
de mexer naquele sapateiro. Bom, por preguiça e porque vi uma aranha se
esconder ali alguns meses antes.
O que foi
diferente naquela vez – e o que talvez aconteça bastante ao redor do mundo
durante o fatídico primeiro dia de cada ano – foi que a partilha continuou, mesmo
sem a minha mãe por perto gritando para reforçar meu desapego como um general
ordena suas tropas a invadir o território inimigo sem piedade, e a se desfazer
dos destroços dos outros combatentes sem dó. Ou então, foi apenas assim que eu me
senti quando concordei em me desfazer de cinquenta tons de camisetas cinzas –
que foram brancas um dia - que eu havia prometido a mim mesmo que continuaria
usando nem que fosse só para dormir. Enfim, independente das ordens do sargento
mãe, que já havia retornado à sua base em Londrina, havia sido dada a largada
para o que viria ser o pequeno passo do aliviamento do meu guarda-roupa, porém
um grande passo para a minha humanidade sufocada.
Quando menos
percebi, junto aos tênis velhos e as camisetas rasgadas, também foram embora a
dó desnecessária, a esperança infame e a piedade inútil que eu ainda segurava
por pessoas. Pessoas que estavam de certo modo grudadas naquelas roupas, e
sorrindo falsamente nos porta-retratos da minha estante, e sujando a já frágil
santidade da linha do tempo do meu Facebook.
O segundo passo da minha manifestação pessoal de revolta contra ser-contra o desapego
veio de forma virtual, ao remover a opção “Desejo
receber notificações dessa pessoa” em alguns perfis.
O que antes
parecia algo tão mesquinho, tão idiota e tão teoricamente fraco de se fazer
acabou me fortalecendo de maneiras que eu nem pensava que fossem possíveis. Eu
não queria não ver aquilo porque era incômodo ou doloroso, mas porque eu
finalmente havia atingido o estado espiritual de pura indiferença. A apoteose
de um “foda-se” bem mandado junto ao zeitgeist de um bom desapego. Eu não
quero saber da sua vida, porque suas atualizações mesquinhas, idiotas e fracas
estão me atrapalhando a ver outras coisas de gente que realmente me importa. E
coisas novas de gente que eu não conheço ainda, mas vai que...
Mas o ápice
da minha marcha a favor do desapego veio mesmo com aquele guarda-chuva. Meses
atrás quando eu era menos preocupado em ser inteligente e sensato, e mais
preocupado em permanecer jovem e apaixonado, eu conheci alguém. Convenhamos que
era alguém boa. Muito boa. Tão boa que até quis me dar amor em troca quando eu
confessei que era isso que eu sentia por ela. E nós fomos felizes... Ah, como
nós fomos felizes! Até não sermos mais. Até eu perceber que aquilo iria acabar
mal, e até ela me fazer perceber que havia feito a escolha certa quando o seu
“não” em resposta ao término se transformou rapidamente em mensagens menos
amigáveis do tipo “você não significou
nada pra mim mesmo” e “boa sorte para
encontrar outra pessoa que te agüente!”. Ah, o amor...
Mas entre o
nascimento e a missa de sétimo dia do nosso amor, houve um guarda-chuva. Um
guarda-chuva que ela me fez comprar quando fomos surpreendidos por uma fria
tempestade que nos empurrou para dentro de um supermercado enquanto esperávamos
ela passar. E entre tentarmos aproveitar aquele tempo para passearmos e sermos
bobos juntos, passamos por uma gôndola de guarda-chuvas. A maioria deles pretos
básicos, e um preto com bolinhas brancas.
“Amor, compra esse!”
“Mas por que logo esse?”
“Porque é bonito!”
As coisas
bobas que fazemos por um amor que está começando são diretamente proporcionais
às atitudes drásticas que tomamos quando ele acaba. Acontece que mesmo depois
do amor ter acabado e da ex ter desgastado toda a minha esperança de querer
voltar a usar aquele guarda-chuva, aquilo continuou aqui, jogado em um canto da
casa. E só era lembrado quando já era tarde demais e estava chovendo lá fora, e
eu ficava entre engolir o orgulho e usá-lo, ou tentar usar meu orgulho pra não
me molhar lá fora. Apesar de todas as coisas ridículas que eu já fiz nessa vida,
eu não deixaria de usar um guarda-chuva só porque ele simboliza o irônico auge
do nosso amor, e o souvenir assombrado que sobrou dele. E sim, eu sei o quanto
dizer isso foi ridículo, e o quanto eu continuava a ser ridículo por não querer
jogar aquele guarda-chuva fora. Até aquele dia.
Jogar o
guarda-chuva fora não foi só jogar um guarda-chuva fora, igual se desfazer de
roupas velhas não foi só se desfazer de roupas velhas e etc... Foi um grito de
independência. Um ato de coragem e uma prova de desapego que serviu para
ensinar a me desprender de tudo aquilo que estava empoeirado com saudade e
jogado pelos cantos da minha casa, e que me fazia tropeçar em vês de seguir em
frente e me concentrar em coisas mais importantes como, digamos, pessoas novas
e ser feliz. É com isso que eu me importo agora, e você pode fazer parte disso
ou não, mas coisas não importam mais pra mim. Apenas ações importam. Companhia
importa. Sinceridade importa. Amor importa. Minha casa não é um mausoléu e um
coração não é lugar para acomodar teias de aranha. A faxina só está começando,
mas já me sinto respirando bem melhor. A garganta não tranca mais com falsas
promessas e sorrisos tortos. De agora em diante só felicidade cabe aqui.