quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O soneto da fidelidade


*Escrito em 27/01/2014.

Se eu tivesse que dizer de onde tirei a idéia de começar a escrever, teria que dizer que foi da minha mãe. De vez em quando nossa casa era tomada por um silêncio estranho, e digo estranho porque passei grande parte da infância sendo constantemente interrogado por ela aos gritos:

- Filhoooo, que tá fazendo?
- Nada, mãe...
- Tá muito quetooo!
- Sou quieto, mãe...
- Não é nãaaao! Vem aqui fazer companhia pra mamãeeee!

Sempre havia alguém gritando dentro de casa, mas num bom sentido, salvas as vezes em que já estávamos reunidos em algum cômodo, hipnotizados pela inércia da televisão. Por isso silêncios eram estranhos. Mas em vês de gritar “Mãeeee, que tá fazendooo?”,  eu optava por ir até a sala e investigar qual era o motivo daquela calmaria. Mamãe morreu? Não. Mamãe estava sentada à mesa, com um caderno de rascunho em mãos, escrevendo algo.

- O que é isso aí, mãe?
- É um dos poemas favoritos da mamãe, filho.
- Como se chama?
- "Soneto da Fidelidade" de Vinicius de Moraes. Você vai ouvir falar muito dele na escola.

Nota #1: quando me refiro à mamãe como "mamãe", é porque estou me colocando aqui no tempo dos meus 10 ou 11 anos. Eu não chamo mais mamãe assim... Só quando ela manda, é claro.

- Do que se trata esse poema, mamãe?
- É uma declaração de amor, filho. Uma das declarações de amor mais bem escritas que já se viu...

Minha mãe era fã do Vinicius; tanto que sabia de cor aquele poema, de cor e de coração. Este e outros poemas eram apenas parte da coletânea que ela havia reescrito naquele caderno. Inspirado por isso, tentei fazer o mesmo, nem que fosse só para descobrir se minha memória era boa o bastante para recordar de quatro estrofes consecutivas sem esquecer de nenhuma vírgula ou lamúria. Não era. E até hoje, permaneço com apenas as molduras do poema em minha mente distorcida - a primeira e a última linha - que, de alguma forma, faziam sentido para mim sem o corpo do texto.

“De tudo ao meu amor serei atento [...] mas que seja infinito enquanto dure."

Mal sabíamos, minha mãe e eu, que aquele momento viria a se tornar o marco zero de uma das características mais marcantes e questionáveis da minha personalidade futura: a atração por declarações de amor, e o desconhecimento do que acontece entre o começo e o fim de um relacionamento. Independente se estiver na forma de poemas ou pessoas.

Eu me sinto consideravelmente criativo em se tratando dos começos das histórias de amor que já vivi. Os ambientes inusitados, as personagens cativantes, o contexto irresistível. À primeira vista parece até que nada daquilo tem sentido quando colocado tudo junto e misturado, mas tinha. Foi assim com a Fulana, com a Ciclana, com a Beltrana e com a - digamos - Amélia. Mas como diria Saint-Exupéry, era tudo muito bonito, muito poético, mas sem muita utilidade. Porque assim como meus começos eram dignos de refilmagens de contos da Disney, meus fins eram igualmente épicos em matéria de tragicomédia. Trágico porque era o fim de um amor, mas cômico porque ainda se tratava de mim. E não importa aonde eu vá, o constrangimento, a ironia e - como se provou recentemente - acidentes estranhos envolvendo telhas voadoras sempre me seguirão. Logo não era surpresa pra ninguém que, quando meus romances terminassem (já não é mais uma questão de "se", mas de "quando" mesmo), podia-se ter certeza de que teria mais uma boa história pra contar na mesa do bar. Como quando a Fulana se mudou pra Florianópolis, a Ciclana voltou pro ex, a Beltrana acabou sendo louca, e a - digamos - Amélia decidiu que nosso amor sequer tinha existido.

Aconteceu que eu me lembrei de tudo isso - da mamãe, dos gritos em casa, do soneto da fidelidade, dos romances épicos propensos ao óbito literário - por causa da Amélia. Porque dia desses, já passados meses desde o funeral do nosso relacionamento, a Amélia resolveu reaparecer. Meses antes eu tentei uma reconciliação hipotética com a Amélia, e digo hipotética porque me agarro sagradamente no uso contínuo das palavras "se" e não "quando" durante nosso diálogo. “Se nós estivéssemos juntos”, ao contrário de “Quando nós estivermos juntos de novo” possui grande diferença nos argumentos quando for apresentar seu caso ao tribunal de apelações de relacionamentos fracassados. Ou quando for explicar aos seus amigos o que aconteceu depois que você chegou no bar estressado e jurando nunca mais amar de novo. Mas quando eu procurei a Amélia de novo, ela não quis saber de mim. E foi tão cruel e vingativa quanto uma mulher naturalmente sabe ser.

Nota #2: não entenda, sob nenhuma circunstância, que eu esteja em algum momento julgando a atitude impiedosa de Amélia. Dada a minha participação no enterro da nossa cumplicidade, achei a reação dela não só justificável como bastante nobre também. Mulheres ainda mais impiedosas não responderiam a nenhum apelo. Mulheres ainda mais impiedosas responderiam a isso com um fósforo, gasolina e um bom álibi para confirmar onde estavam quando o incêndio no meu apartamento começou.

Três meses depois, ali estava ela. Sua janela de conversação apareceu na minha tela com a mesma naturalidade que costumava aparecer durante todos os dias em que ainda gostávamos um do outro. E me disse um "Olá, Igor..." que era tudo, menos inofensivo.

Mesmo sem ter tanta experiência assim em se tratando de relacionamentos e suas respectivas regras de convivência, eu aprendi que em hipótese alguma é possível manter alguma espécie de vínculo saudável com uma ex-namorada. Não adianta vocês quererem se convencer de que são pessoas adultas, maduras e sensatas que participam ativamente da sociedade moderna do século XXI. Porque em algum momento as lembranças das mãos dadas, dos beijos trocados e das pernas descobertas pelo lençol irão te alcançar. Assim como as discussões infames, os discursos prontos e as dores de cabeça que o amor – ah, o amor! – um dia se virou contra você e te fez questionar se precisava mesmo passar por isso. Tudo faz parte do processo natural da vida, como já dita a própria física: dois corpos que decidiram se separar tendem a permanecer distantes. Namoros, compromissos e casamentos duram o tempo que você conseguir se esforçar para mantê-los. Separações, despedidas e divórcios são para sempre. Sem querer parecer horrivelmente cínico; é só uma observação de quem não viveu muito, mas viu muita coisa por aí capaz de me desmotivar a querer tentar entregar meu coração de bandeja para outra pessoa, assim, com a maior facilidade do mundo, sem ter medo de que ela o jogue no chão, atropele com o carro, chame amigos para fazerem manifestações populares em cima dele, e depois aponte e dê risada. Mas eu posso estar exagerando...

Só que quando a Amélia me chamou, todas as teorias, as lembranças ruins e até mesmo a própria realidade se tornaram irremediavelmente questionáveis. Um “Olá” depois de três meses? Um “Olá” aparentemente despretensioso depois de tanto tempo e tanta coisa? Um “Olá” depois de ter me dito “Nunca mais me procure, nem tivemos nada sério, vai cuidar da sua vida e me esqueça!” definitivamente queria dizer algo a mais.

- Olá, Amélia... Tudo bem?
- Tudo bem e com você?
- Tudo bem...
- Então... Eu só queria dizer que sinto muito pelo jeito que te tratei na nossa última conversa... Foi cruel da minha parte e me sinto mal por fazer isso com alguém. Saiba que só guardo lembranças boas do nosso tempo juntos agora, e espero que você encontre o seu amor logo...

Era uma noite de domingo de um fim de mês de férias. Era o ápice do tédio, do calor de Janeiro e da temporada de mariposas atraídas pela luz do quarto. Era o momento mais insosso para uma conversa desse tipo. Era tudo que eu jamais esperava ouvir, depois das últimas palavras que Amélia havia me dito três meses atrás. “E você pensou nisso por três meses, Amélia, ou sentiu meu perfume em alguém quando pegou seu ônibus de volta pra casa e repentinamente se lembrou de mim, de nós, e das coisas boas que compartilhamos antes de todo aquele asco, todo aquele drama? Todo aquele fim que, pelo visto, não tinha fim”, pensei.

Difícil dizer exatamente o que eu senti. Saudade, raiva, compaixão? Por ela? Por mim? Por nós? Eu não sei. Só o que sei foi que, naquele momento, minha memória imediatamente me levou de volta a imagem da mamãe reescrevendo aquele poema do Vinicius, sentada à mesa da sala, e as molduras que desde sempre remetiam a mim o prelúdio e o desfecho de uma história de amor. Pra ficar perfeito mesmo só faltava o interlúdio, o enredo, a história em si. O desenvolver desse amor que, mesmo depois de tanto tempo desde a primeira vez que li o poema e tentei reescrevê-lo, eu ainda não era capaz de produzir. Certamente sou capaz de grandes epílogos de paixões memoráveis, bem como a implosão dos mesmos sentimentos através de proporções homéricas. Mas eu, definitivamente, deveria ter me esforçado mais com o interlúdio...

“De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.”

O que me alivia de certa forma é saber que a Amélia vai ficar bem, apesar de mim. O que me enlouquece, por outro lado, é pensar que talvez eu me torne mesmo um mestre dos romances, dominando com maestria aquela primordial troca de olhares até a decadência de dois corações, sem nunca realmente descobrir o que o Vinicius vem tentando me dizer há anos. Não é o começo do amor que importa, muito menos o seu fim. É o que você faz para mantê-lo, todos os dias, a cada vão momento da nossa existência, que faz toda a diferença.

Nota #3: ou talvez seja melhor ir para a cama à noite com mais beijos e menos literatura, só pra variar um pouco.