segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A última garota certa


Só para constar: tudo o que eu queria era um jantarzinho a dois. Mas você não colabora...

***

Nada ilustra a coleção de erros que eu já fiz nessa vida de maneira tão clara como a minha lista de contatos do WhatsApp. Foi o que pensei durante o auge do meu desespero existencial silencioso que costuma surgir do tédio das noites de domingo, enquanto descia a barra de rolagem da agenda do telefone e revisitava mentalmente as razões pelas quais sequer havia salvo os números de algumas pessoas que, como o tempo veio a demonstrar, não fizeram jus a demonstrações do tipo “precisando é só chamar” ou “estarei sempre aqui” que costumávamos trocar. Talvez seja apenas mais um dos efeitos colaterais dos vinte e poucos anos, juntamente à instabilidade financeira e o pavor terminal por qualquer compromisso. Mas é algo que me pareceu especialmente explícito dessa vez, considerando o quão vulnerável eu ando me sentindo nesses últimos dias.

A mudança para Foz do Iguaçu há meses perdeu seu ar de novidade. Já me habituei com as ruas, a hora certa de atravessar certos cruzamentos, os nomes de alguns bairros – embora não necessariamente saiba como chegar até eles – e até mesmo a saudade da minha vida antiga se aquietou de modo que lembrar dos meus amigos e das idiotices que fazíamos juntos não acarreta mais em nostalgias chorosas. E talvez seja esse novo e saudoso estado que a minha saudade atingiu que tenha aberto brecha para outros sentimentos inflarem. Como me conheço bem, era de se esperar que a frustração crescente fosse a primeira da fila. E digo “crescente” porque, enfim, já construí um pequeno histórico por aqui no qual posso me amparar para dizer que as coisas e as pessoas deixaram de ser assustadoramente novas e passam a ser demasiadamente insossas.

Um eco de outono passou pela cidade esses dias, alertando quem estivesse prestando atenção que o verão está chegando ao fim. E se tudo der certo, logo estaremos na estação em que é totalmente aceitável não sair por aí em trocar de ficar em casa debaixo das cobertas com um filme, uma bebida quente e – eis o ápice da frustração – alguém especial do lado. Porque muito do que eu associo ao inverno são lembranças terrivelmente solitárias, quando ter “alguém especial” ao lado parecia ser a solução de todo a frieza que me cercava. E que me levam a sentir falta, particularmente, dos lugares comuns que todo relacionamento possui. O cineminha espontâneo, as mãos dadas no shopping, as conversas sussurradas na cama, até o clássico jantarzinho a dois. Não sei dizer se realmente gostaria de um novo relacionamento hoje, mas aquele ar denso e garoa leve que tomaram conta do calor habitual da cidade me lembraram do quanto eu gostaria, só por uma noite, revisitar um lugar comum com “alguém especial”.

Desde que aprendi a cozinhar penso em como seria escolher um cardápio especial para preparar para “alguém especial”. Provavelmente uma massa... Acho que romance combina bem com massas. E um bom vinho para acompanhar, que deixaria gelando um pouco enquanto preparasse a comida. Arrumaria a mesa de um jeito que demonstrasse o quanto tudo foi pensado para que essa noite fosse mesmo algo diferente. Guardanapos dobrados em triângulos isósceles à esquerda do prato, taças de vinho à direita. Luz de velas? Talvez. É importante para mim pensar nesses detalhes. Porque é bom saber que a vida, o tempo e os relacionamentos mal resolvidos que ainda residem na agenda do meu celular ainda não anularam por completo o romance que há em mim.

Romance, inclusive, que costumava ser sinônimo da minha personalidade em vez de antítese dela. Foi o que todos aqueles relacionamentos fracassados que invariavelmente ainda ocupam espaço não só na memória do meu telefone, mas no meu coração também, me ensinaram. Rompimentos, decepções, vácuos e esquecimentos que me deixaram bem mais propenso à racionalidade de que criar expectativas não só é desaconselhável como perigoso. E que a fantasia de encontrar alguém e acreditar, apesar dos pesares, que pode dar certo é mais do que infantilidade; é ridículo.

Então eu me lembrei do quanto me tornei imune ao ridículo há muito tempo. E como não há mais nada que eu deixaria de fazer se eu sentisse mesmo vontade. Afinal de contas, foi a impulsividade que me motivou a seguir um sonho, e que me trouxe até aqui, e que já criou tantas histórias nessa cidade ao ponto de acabar com o meu medo e de, enfim, dar espaço a um pouco de tédio existencial de novo. E aí eu fui para a cozinha...

***

Repassando minha lista de contatos mais uma vez, confesso que fiquei triste por um momento. A janta estava pronta. A mesa estava posta. O vinho estava aberto. Só não havia companhia. Talvez não precisasse ser “alguém especial” esta noite. Porém não alguém tão desprovida de mitologia e personalidade também. Mas só o que parecia haver no meu celular eram contatos que provavelmente não aceitariam o convite por desinteresse, ou não poderiam por geografia ou outros planos que já tivessem feito. E ao colocar-me no lugar comum que tanto sentia falta, eu percebi que reconstruí-lo foi bom para matar a saudade. Mesmo que estivesse desacompanhado esta noite, ainda foi bom para relembrar algo ainda mais importante que pensei ter abandonado há anos. O sonho de cozinhar um jantarzinho a dois não só para alguém especial, mas a garota certa. A última garota certa que eu irei conhecer.

E foi bom perceber que depois de anos eu finalmente aprendi a cozinhar para dois. Como eu poderia deixar de acreditar justo agora?

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O primeiro dia


De todos os tipos de insegurança pelos quais alguém pode suar frio, talvez nenhum supere aquela em especial que surge entre fechar a porta de casa e abrir a porta da sala no seu primeiro dia de aula. É o equivalente emocional ao desbravamento do Novo Mundo, mas em vês de índios enfileirados tentando entender o que são aquelas embarcações ancorando em suas terras com homens estranhos afirmando que tudo ali pertence a eles agora, a visão é de outros alunos consideravelmente mais inseguros do que você que chegaram antes e conquistaram o privilégio de assistir enquanto outros tentam disfarçar seu nervosismo ao discernir qual é a carteira mais disfarçada para se sentar. Isto é, enquanto tentam disfarçar sua própria ansiedade quanto ao coleguinha novo ao lado.

Eu sempre defendi a velha teoria sobre como o começo das coisas é sempre a pior parte, salvo em relacionamentos – sendo estes a única exceção em que a insegurança é, por natureza, constante. Mas em terras desconhecidas cujas quais nos colocamos à prova para conhecer, seja o emprego novo em que ainda não decoramos os nomes de todos que trabalham no nosso setor, ou o primeiro constrangimento a ser sentido nos corredores do ensino superior, passando por veteranos que facilmente enxergam nossa desorientação ao procurarmos a nossa sala, a insegurança é mais do que um mero sentimento; é um estilo momentâneo de vida.

Quanto a mim, por mais que tivesse contado os dias para que a faculdade começasse, insegurança foi o único sentimento que não senti. A ansiedade para começar, a determinação para me focar melhor desta vez e os sonhos que visava desde o momento em que fiz a matrícula foram o que me fizeram companhia durante o verão. Nem mesmo dar duas voltas no campus e ter que pedir ajuda a um cara da manutenção para achar a minha sala me desanimou. Eu só me sentia feliz por estar ali. Recomeçando.

Mas a insegurança certamente não iria falhar desta vez. O nervosismo nos primeiros dias de aula é diretamente proporcional ao conforto que você sente nos últimos dias, quando já se é obrigado a, segundo o filósofo Leonardo, ter que aprender a dizer adeus a tudo que demorou tanto para ser reconhecido, conquistado e habitual. E talvez ninguém mais naquela sala saberia disso tão bem quanto eu, independente do quanto estivessem se sentindo desajeitados ou perdidos. Primeiros dias são assim e eu sei bem disso. Até agora eu tive três.

A primeira vez, em 2009, e a segunda, em 2010, nunca pareceram tão vivas quanto nesta semana. E me fizeram perceber que por mais que eu gostasse de me imaginar como igual àqueles que estavam passando pelos corredores de uma faculdade pela primeira vez, e por mais que nunca tivesse passado da secretaria acadêmica até então, tudo aquilo já parecia terrivelmente familiar para mim. Os deboches dos veteranos, os rumores sobre trotes nos calouros, as placas orientando como chegar à sala que nunca realmente ajudam... Eu já havia passado por tudo isso antes. O que, teoricamente, deveria me ajudar a sentir um pouco mais de segurança dessa vez. Só que não.

Na verdade não há nenhum estigma real em cursar uma segunda faculdade. Em trocar de cursos e dar um novo significado à sua carreira e, por conseqüência, à sua vida. Claro que será cansativo ter prazos para entrega de trabalhos de novo, bem como as alegrias e dramas de conviver diariamente com uma turma de acadêmicos que invariavelmente irão se conhecer, festar, brigar, reatar, brigar de novo, passar reto uns pelos outros por um tempo até se reatarem de novo porque já é o último ano e será preciso sair dali de bem com todo mundo, porque “tudo valeu a pena”. Já passei por isso, briguei com meio mundo só para acabar festando com todos nos últimos dias, e usei tudo isso no meu discurso na formatura após ser eleito o orador da classe. É o ciclo da vida. Acontece...

E depois de tudo que vivi antes de chegar até aqui, até o fatídico primeiro dia, eu sinceramente pensei que estava imune à insegurança. E que poderia, inclusive, ajudar quem estivesse mais quieto ou acuado a se enturmar melhor porque não há nada o que temer nesse Novo Mundo. A não ser, talvez, a pessoa que você irá se tornar daqui em diante. Porque como todo mundo que já sobreviveu aos pagamentos de carnês de uma formatura de ensino superior, nada definitivamente será como foi antes desse primeiro dia.

Não me entenda errado; eu estou feliz. Feliz e grato pela segunda chance de ir atrás de um sonho que abandonei por outro que, no final das contas, fez jus ao título de “segunda opção” conforme aquele teste vocacional que fiz em 2008 resultou. Mas estar aqui, em uma sala de aula de novo, cercado de pessoas que eu ainda não conheço e de um Novo Mundo que ainda não entendo bem como funciona, me fez sentir algo que ainda não havia sentido desde que cheguei em Foz do Iguaçu. Algo, inclusive, que não sentia há bem mais tempo que isso, em outra cidade e em outra vida. Algo que me fez duvidar de tudo que passei para chegar até aqui, e tudo que seria capaz de fazer dali em diante.

Eu me senti sozinho...

***

E foi só depois que eu voltei para casa, para a família com quem eu moro hoje, com a gata insuportavelmente inquieta que insiste em me morder desde o momento em que eu entro pela porta, e o wi-fi começou a receber inúmeras mensagens dos meus amigos de longe que queriam saber como havia sido a aula, que eu percebi o quanto a insegurança do primeiro dia pode até ser invariavelmente inevitável, mas é definitivamente passageira. Algumas pessoas daquela sala já até sabiam o meu nome... Eu acho. Bom, eu sei o de alguns. E de três coisas eu tenho certeza: é só o começo, eu não estou sozinho e, definitivamente, faltou um copo de uísque nos meus últimos primeiros dias.

Eu vou ficar bem.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O significado do amor


*Escrito em 27/04/2014.

Se por acaso você veio até aqui com a expectativa de encontrar uma resposta pronta, pare de ler, feche esta aba e volte para o Facebook. Porque eu não tenho as respostas, e talvez nem esteja tão perto de encontrá-las quanto eu gosto de pensar. A verdade é que talvez nem existam as respostas certas, ou erradas, ou meio-certas mas que servem para você passar de ano na média. Por mais que eu não saiba dizer o que exatamente é o amor, da onde ele vem ou do que ele se alimenta, eu também não preciso esperar pelo Globo Repórter para aprender que um sentimento tão grande como este não cabe em pequenas definições, por mais que seja composto de apenas quatro letras. Quatro letras com uma promessa imensa. Basta só você encontrar alguém com quem possa compartilhá-las. E que este alguém te entenda.

Mas ultimamente eu tenho me sentido bem mais esperançoso do que em meus últimos devaneios transcritos que despejei aqui. Que eu vivo escrevendo sobre amor, expectativas, esperanças e sonhos, todo mundo sabe. É o que me move quando eu saio por aí, mundo afora, com meus fones de ouvido no máximo e meus óculos escuros que escondem parte do meu rosto e, convenhamos, algumas lágrimas também. As coisas não estão fáceis, mas se for parar pra pensar, quando foi que estiveram? Quando foi que eu realmente senti que a minha vida estava em completa ordem e disposição? E por que isso seria automaticamente algo bom?

Neuroses a parte, eu gosto dos meus problemas. E eu gosto de toda a calamidade que eles proporcionam, exatamente porque eles são meus e precisam de toda a atenção que puderem receber. E aí eu sento, choro, escrevo, sonho, reflito, rezo e imploro por dias melhores... Talvez não seja o sistema mais eficaz de todos, e por mais que os dias melhores pareçam tão distantes às vezes, eu deveria ser mais agradecido pelo fato de que eles não chegam todos de uma vez. Não. Eles chegam aos poucos, um após o outro, conforme a vida percebe que precisamos de um pouco mais de incentivo para levantar da cama de manhã e continuar tentando organizar todos esses sentimentos que passam a maior parte do tempo espatifados no chão do que arrumados e guardados nas suas devidas estantes. E eu estou começando a entender que isso é bom, e que é assim que as coisas tem que ser mesmo.

Eu conheci muitas pessoas novas este ano, e cada uma delas entrou na minha vida carregando sua própria história, suas próprias lembranças, medos e esperanças sobre o futuro. Mas nem todas ficaram, e eu entendo que nem todas poderiam. Por mais que eu também goste de pensar que sou um ser humano neurótico e invariavelmente contente, não há muito espaço para as teorias de conspiração e crises existenciais de outras pessoas. Mas as que ficam, as que grudam, as que eu gosto de saber como estão indo, essas eu faço questão de arrumar algum espaço, por mais que a minha vida fique ainda mais bagunçada quando eu empurro todas as minhas inseguranças para algum canto, para que a gente consiga se sentir confortáveis dentro desse mesmo coração.

Mais vezes do que deveria, eu penso que viver um relacionamento não está nos planos dos dias melhores que estão por vir. Porque as pessoas são difíceis, sentimentos são complicados, compromissos são pesados, e amar é algo incomensuravelmente difícil. E quando a minha linha do tempo do Facebook começa a se encher de fotos de casais felizes, e amigos meus me ligam para dizer que estão noivos e querem que eu seja o padrinho do casamento, e eu pareço ser o único em um jantar que não tem uma desculpa plausível para explicar porque a cadeira ao meu lado está vazia, eu baixo a guarda e admito que o amor pode até ter os seus desafios e suas decadências... Mas se todos esses casais, essas declarações, essas mãos dadas no shopping, e esses sorrisos que aparecem durante beijos por aí significam alguma coisa, é que aquelas quatro letras podem até possuir um significado muito complexo e pessoal, mas que definitivamente vale a pena correr atrás.

O que é o amor para mim então? É o que eu sinto pelos amigos que convivem comigo, e tem descoberto constantemente o quanto eu posso ser tão irritante e difícil quanto eles, mas que continuam do meu lado por mais que já tenhamos dado todos os motivos do mundo para desistirmos uns dos outros. É o que eu sinto pela minha família, que me motiva e me inspira com a mesma proporção em que me abala e me destrói na velocidade de um almoço de Domingo. Mas principalmente, é o que eu sinto por mim, e por cada peça que compõe o quebra-cabeças do meu coração cansado e desgastado, mas que é digno de ser dado de presente para outra pessoa que também se importe o bastante para me retribuir com o dela.

Claro que o amor também pode ser receber aquele abraço apertado depois de um dia difícil, de uma pessoa que te conhece o bastante para saber que você não precisa nem pedir por isso, porque seus olhos já delatam a sua tristeza. Pode ser o empenho que você coloca ao planejar uma festa de aniversário para alguém, ou passar frio em uma mesa do lado de fora do bar só porque você não quer que aquela conversa acabe, ou trocar mensagens no WhatsApp o dia inteiro, ou passar horas no telefone com aquele alguém de madrugada, só porque ouvir a voz dela é mais relaxador do que simplesmente ir dormir. Pode até ser a sensação que você tem ao abrir a geladeira e descobrir que sobrou pizza da noite anterior, e que você não vai precisar ir ao supermercado para providenciar o seu almoço. Pode ser tudo isso em muito mais, porque ninguém ama igual a outra pessoa, e cada um de nós vem completo com sua coletânea de sentimentos que enfeitam as estantes da nossa casa e da nossa vida, mas que na maioria das vezes sempre deixa um espaço vazio para que outra pessoa também adicione um volume seu em nossa coleção.

Acho que o que eu estou tentando dizer é que, apesar de não estar em um relacionamento e das coisas não estarem tão boas assim, ainda existe tanto amor em mim nesta vida que, em vês de sentir falta, eu tenho mais a agradecer.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

A teoria das mãos dadas no shopping

*Escrito em 19/02/2014.

Baseado em fatos reais. Ou não.

Quatro amigos em um bar, já na quinta rodada de cerveja. Uma mulher morena, alta e generosamente encorpada passa por eles.

Amigo #1, o pega-todas: Viu só aquela ali?
Amigo #2, o desligado: Aonde?
Amigo #3, o filósofo: Aquela que acabou de levantar pra ir ao banheiro e passou por aqui.
Igor, o paranóico facilmente impressionável que vos fala: Que bunda! (Obs.1: O termo utilizado não foi “bunda”, mas foi modificado aqui para fins educativos.)

Amigo #1: O que achou, Igor?
Igor: Gata, hein. De baixo pra cima, não de cima pra baixo. Não consegui ver o rosto dela.
Amigo #3: Melhor não ver. Não perdeu nada. De baixo pra cima, de trás pra frente só. Frente e cima, acabamento pobre. Baixo e trás é onde o ouro está.

O Amigo #2 concordou em silêncio

Igor: Mesmo assim, parece gata. Dá pra perder um tempo. Uns 10, 15 minutos. Uns dois ou três meses, quem sabe. Nada sério. Sabem da minha teoria de que namorar seria bom se fosse só de segunda à quinta de tarde; de quinta à noite até domingo, liberdade de expressão.
Amigos #1 e #3 concordaram e beberam mais um gole de cerveja.
Amigo #1: Aí sim, seria bom. Mas às vezes em uma semana morna, fraca, faz falta aquele outro corpo ali. Fazendo companhia, brincando um pouco, esquentando uma pipoca pra ver um filminho...
Igor: Claro, mas isso é coisa do que? Segunda à noite, né. Dentro dos parâmetros da regra. Agora, sexta à noite, vai me dizer que ficar em casa enrolado na coberta assistindo Globo Repórter com aquela ali era tudo que você queria? Se te conheço bem, nem iria levar ela pra casa, pra não arriscar ter ela aparecendo lá de madrugada berrando que você nunca mais ligou e que o amor de vocês é pra valer.

O Amigo #2 concordou mais uma vez, entre um gole e outro. (Obs.2: Vale ressaltar que quando quatro caras se reúnem em um bar, a divisão do debate é clara: sempre há o mediador, o argumentador, o radical, e o Amigo #2, que só concorda e a cada 3 garrafas, paga uma rodada.)
Amigo #1: Mas aí você já ta exagerando, Igor. Vai dizer que não rolava com aquela ali?
Igor: Claro que rolava. Quer dizer, ainda não vi a cara dela. Espera ela voltar do banheiro, aí te digo se a lenda dessa paixão me faz sorrir ou faz chorar. Entendeu agora?
Amigo #3: A pergunta principal não é essa. É a teoria das mãos dadas no shopping.

O Amigo #1 não reagiu, como se já fosse um velho aprendiz daquela filosofia. O Amigo #2 interrompeu seu gole para prestar mais atenção, como se sua ingestão de álcool o impedisse de absorver toda a sabedoria que estava por vir. Eu, pelo contrário, tomei outro antes de procurar saber mais.

Igor: A teoria das mãos dadas no shopping?
Amigo #3: Exatamente. Para qualquer mulher, o homem mentalmente diz “sim” ou “não”, “vou” ou “não vou”. Mas isso é a teoria. Na prática é o seguinte: aquela menina da bunda é pra você sair hoje e não ligar nunca mais, ou pra andar de mãos dadas com ela no shopping?

O Amigo #2 manteve-se em inércia. O Amigo #1 pediu outra garrafa.

Igor: Mas por que o shopping exatamente?
Amigo #3: O shopping não é o shopping. O shopping é uma pequena amostra da sociedade, dependendo do horário que você for. Se for no horário nobre, tem de tudo. Tem casais, tem novinhas, tem avós, tem petistas, tem religiosos, tem ambientalistas, ambidestros, alienados... Andar de mãos dadas no shopping é como assumir pra sociedade que você está levando a sério o comprometimento com aquela pessoa, e que você se orgulha disso. Essa teoria só perde pro teste da primeira vez em que você leva ela pra conhecer a sua mãe.

O Amigo #2 arregalou os olhos de tanta surpresa. O Amigo #1 estava vasculhando os bolsos pra tentar pagar o garçom com dinheiro trocado.

Igor: Tudo bem, agora eu entendi. Bom, eu não vi ela ainda, mas te digo que não. Não andaria de mãos dadas com ela no shopping. Pelo que parece, ela não é dessas. Ela parece mais ser do tipo “carro parado em estacionamento de shopping depois da sessão de cinema das duas da tarde em uma terça-feira preguiçosa”. Sem romance, só fricção.

Os Amigos #1 a #3 riram. Eu tomei um gole pra facilitar a descida da frivolidade que havia expressado pela minha garganta abaixo. Felizmente, esta nova rodada estava estupidamente gelada.

Amigo #1: E com quem você andaria de mãos dadas no shopping, Igor?
Igor: Boa pergunta. E por enquanto te digo que não há nenhuma boa pretendente para passar por esse teste.
Amigo #1: Você anda muito exagerado. Precisa sair mais. Vai que você conhece alguém, e semana que vem já está de mãos dadas com ela por aí, esfregando seu comprometimento na cara da sociedade?

No meio do novo debate, os Amigos #2 e #3 mantiveram-se na platéia.

Igor: Agora, dessa teoria eu manjo. “Vai Que”. “Vai Que” é o que já me fez sair muitas vezes por aí, crente de que valeria mais a pena do que ficar em casa com uma reprise de algum seriado, um copo de uísque e uma pizza de pepperoni. Até agora, “Vai Que” só me criou esperança que brotou arrependimento. Só que até a presente data, nunca “Foi Que”. Agora, a reprise, o uísque e o pepperoni nunca decepcionam.
Amigo #1: Então fica em casa só com o pepperoni, já que é isso que você curte!

(Risos embriagados de todos)

Amigo #1: Você precisa conhecer alguém.
Igor: Você precisa conhecer alguém!
Amigo #3: Eu preciso pegar alguém.

O Amigo #2 concordou com tudo. Eis que finalmente a morena encorpada sai do banheiro e passa novamente por eles. Todos tentam ser sutis ao acompanhá-la, sem sucesso.

Amigo #3: E aí?
Igor: É, definitivamente vale a pena de baixo pra cima, de trás pra frente. Não é pra andar de mãos dadas em lugar nenhum.
Amigo #1: Dá pra dar uns “pega”. Não é de jogar fora, mas também não adotaria. Parece judiada, mas esforçada.
Igor: Acho que agora acabamos de vez com ela, e com o jeito que a gente fala de mulher mesmo. Mas aquela ali parece mesmo experiente.
Amigo #2: Era a minha irmã...

 Silêncio constrangedor. O Amigo #3 pede a conta.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O lixo existencial


*Escrito em 26/01/2014.

Em conversas com algumas pessoas que se inspiraram com meus surtos de ócio criativo e queriam saber de mim como era escrever coisas tão sem sentido, mas ao mesmo tempo tão dolorosamente profundas e sinceras, eu disse que era como jogar o lixo fora.

- “Jogar o lixo fora?!”
- É!

Pensa comigo: Você vai no supermercado e compra um bolo, ok? Aí você chega em casa, arruma a mesa com todo o cuidado, coloca a cafeteira pra trabalhar, e muda o status do seu WhatsApp pra “Comendo bolo, oh yeah”. Então você senta na mesa, serve um café, corta uma fatia do bolo e imediatamente sobe aos céus do orgasmo estomacal. A primeira mordida te dá aquela expressão de “Esperei por você a vida inteira!”, coisa que algumas pessoas já não te provocam mais, só a comida mesmo. Aliás, acho que depois de algum tempo, a gente deixa de sentir amor com o coração e só sente paixão com o estômago, mas isso é assunto para outro amanhã.

Enfim...  As primeiras fatias daquele bolo foram deliciosas, saborosas, salivantes. Aí você guarda o resto daquele bolo na geladeira para comer mais algum outro dia, só que você se esqueceu de que essa semana era o prazo final para entregar aquele trabalho sobre o narcisismo segundo Freud, que tem reunião no trabalho a respeito das novas estratégias de divulgação dos projetos de assistência social da prefeitura, que você precisa retornar as três chamadas não atendidas da sua mãe que ficou preocupada com você ontem depois da sua consulta no dermatologista sobre aquela mancha estranha no seu pescoço, mais a chamada daquela garota que te chamou pra sair de novo justo enquanto você estava no telefone com a sua mãe e esqueceu de mandar mensagem perguntando como ela estava só pra não perder o contato, e que você ainda precisa passar no mercado a caminho de casa porque acabou o detergente para lavar aquela louça do jantar que você organizou com os amigos na sua casa anteontem, e que não lavou porque ainda tinha espaço na pia para renegar a louça do seu café de hoje de manhã.

Quer dizer, aonde você encaixa o resto daquele bolo nisso tudo? E o bolo não espera pela gente. Muito pelo contrário, ele se transforma em uma bomba relógio na sua geladeira que irá autodestruir sua deliciosa, saborosa, salivante consistência exatamente quando você se lembrar da existência dele de novo e abrir a porta da geladeira só para se deparar com seus restos mortais em decadência dentro daquele tuppaware da sua mãe – que você também se esqueceu de devolver e sempre dá uma desculpa quando ela liga cobrando, mas que agora vai ter que jogar fora e ser condenado pelo resto da vida por ser “irresponsável” com tudo que a mamãe te empresta.

Acontece, então, uma revolução dentro de você. Aquela calma que só o desespero dá, e que se multiplica e passa a tomar atitudes por você depois de borbulhar toda a raiva, ansiedade, angústia, tesão desperdiçado e tristeza por ter chego mais uma noite de sexta e, em vês de sair, você levanta a bandeira branca e decide ficar em casa porque não há balada no mundo que compense você deixar a sua cama para trocar de roupa, se meter no meio de uma multidão de pessoas bêbadas e música alta, e ainda se agarrar na esperança de que aquele dia ainda pode valer a pena. “Vai que eu conheço alguém...?”. Mas como até o presente momento nunca “Foi que...”, você desiste.

E aí você vai até a geladeira de madrugada para pegar uma garrafa d’água e reencontra aquele tuppaware, só que sem nenhuma lembrança do que há dentro dele. E então você o redescobre: o bolo delicioso, saboroso, saliente que você comprou mês passado, comeu três fatias, e deixou perdido no vórtex de esquecimento aleatório e caos transitório que compõe a sua vida. E às três e quinze da manhã da madrugada de domingo, você joga aquele bolo fora, tenta ressuscitar a tuppaware da sua mãe para evitar mais um sermão da montanha com o detergente que você milagrosamente se lembrou de comprar, e volta para a cama se sentindo ridiculamente vitorioso.

O que eu quero dizer com tudo isso? A vida é a vida mesmo; a minha tem dessas coisas de esquecer comida na geladeira porque passei a semana alternando entre reuniões de trabalho, filas de banco, mensagens de amigos ressentidos porque esqueci de respondê-los, consultas médicas a respeito do que sobrou da minha saúde precária, e telefonemas da minha mãe me xingando porque eu não tenho paciência com ela, até que ela mesma perde a paciência e desliga na minha cara. Se sua vida não for parecida com isso, certamente tem outros problemas que te fazem esquecer que a semana tem cinco dias que passam voando, que muita coisa ficou sem ser resolvida, e que aquele bolo continua guardado na sua geladeira, envelhecendo e apodrecendo como a nossa própria paz de espírito, que é testada pelo tempo a cada boleto bancário que a gente tem que reimprimir porque o boleto de verdade se perdeu pelo correio.

O sabor do bolo pode variar: pode ser aquele amor perdido que você ainda não superou, aquela paixão arrebatadora que te roubou noites de sono e tentou te sufocar durante a noite com um travesseiro de saudade, ou pode ser de raspas de chocolate mesmo. Agora imagine você jogando esse bolo no lixo, e jogando esse lixo fora da sua casa. Fora da sua vida. É, no mínimo, libertador. Por um milésimo de segundo, aquele lixo representa o fim da repressão de todas as dificuldades da sua vida, que parecem finalmente terem entrado em uma convergência milagrosa e que você, no trocar de uma sacola de lixo, conseguiu se desprender e recuperar aquela sua paz de espírito que você achou que tinha perdido, junto com as chaves do carro e aquele maldito boleto bancário que você teve que reimprimir.

Escrever para mim é isso. É tirar alguns minutos do caos que domina a minha vida para fazer uma limpa na geladeira e jogar pedaços de bolo fora. Porque eu como muito bolo – metaforicamente falando, por enquanto – mas nem sempre lido com as sobras de maneira muito direta ou saudável. E guardo os restos mortais bem no fundo da geladeira, para lidar com isso em qualquer outro dia que não seja hoje. É como bloquear aquela pessoa do Facebook porque você ainda não quer lidar com o fato de que vocês não andam mais de mãos dadas, não trocam mais mensagens de madrugada, nem se cumprimentam quando se encontram no estacionamento do shopping. Mas quando você tira o dia para limpar a geladeira, e lidar com o fim daquele relacionamento, ou chorar tudo que tem pra chorar por aquela pessoa que simplesmente não vai ser sua, você finalmente confronta o fato de que as sobras daquele bolo não são mais comestíveis, que nada daquilo ainda tem a algo a ver com você, e que o lugar daquilo é no lixo.

Claro, este blog não é um lixão e vocês não estão aqui chafurdando nos restos mortais da minha vida pessoal, amorosa ou ilusória. Este blog é uma obra verdadeiramente fictícia, cujo objetivo é me livrar de toda bagagem emocional que eu não quero mais carregar, e me emagrecer de todo rancor, insatisfação e dúvidas que costumam me inchar e me impedem de entrar nas minhas calças novas. Caso você se identifique com alguma coisa por aqui, e isto te inspire a mudar sua vida ou – digamos – limpar a sua geladeira, fico feliz por você. Estamos todos juntos neste mundo torto e incorrigível, esperando por dias mais felizes, pela vitória na copa do mundo, e por – digamos – pedaços de bolo que não nos decepcionem.

Enfim, é por isso que eu escrevo. Aceita mais um pedaço?

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Seis meses ou Desafio aceito


Se dissesse que ninguém sabe o que esse dia significa para mim, estaria mentindo. Por sorte ou por acaso ainda existe muita gente que acompanha os capítulos que escrevo por aqui. São as mesmas pessoas, inclusive, que me inspiram a continuar escrevendo. Bem como são as mesmas sem as quais provavelmente eu não estaria aqui agora. Mas antes que me perca em todo o sentimentalismo, e perca sua atenção também, espero que perdoe esta falta momentânea de sarcasmo e irreverência habituais que costumam preencher as linhas desta página. Porque hoje é um dia especial, afinal de contas. É o dia que eu esperei por muito, mas muito tempo. Não apenas meros seis meses.

Há quem encontra sua paixão na vida bem antes dos outros e faz parecer que esse tipo de coisa simplesmente não irá acontecer com mais ninguém. Porque é o tipo de paixão que te tira da cama de manhã e te motiva a continuar buscando, lutando, tentando tudo o que puder, porque é invariavelmente o que lhe dá motivo para existir. Psicologias à parte, todo mundo precisa desse tipo de paixão na vida. Alguns encontram em um amor para recordar, outros no conforto dos almoços de domingo com a família que nunca irá te abandonar, aconteça o que acontecer. Mas o tipo de paixão da qual estou tentando dizer é daquela que só quem já a alcançou irá realmente entender. É o tipo de paixão que algumas pessoas passam a maior parte da vida procurando. A paixão por fazer aquilo que você gosta, e de moldar a sua vida ao redor disto. Há quem diga que felicidade atrai felicidade, e que quando se é capaz de expressar a sua paixão – artisticamente, profissionalmente, emocionalmente – o universo também retribui. E até onde consigo me lembrar, minha paixão de verdade sempre foi além de relacionamentos – fossem eles reais, imaginários, platônicos ou até mesmo bem correspondidos. Minha paixão está exatamente nisso: nas palavras. E nos mundos que elas permitem construir ou até mesmo desconstruir. Em se tratando de justiça poética, o choro é sempre livre.

Nos últimos seis meses, desde que me mudei para Foz do Iguaçu com um caminhão de mudança cheio de móveis, roupas e tralhas – e um coração cheio de arrependimentos, mágoas e sonhos que ainda permiti manter – eu fiz tudo o que pude para me manter inteiro até que esse dia chegasse. E entre praticar corridas, aprender a cozinhar, vivenciar experiências novas, visitar marcos turísticos, questionar a natureza dos meus relacionamentos passados (e as maneiras como os novos se desenrolam ultimamente), fazer promessas que pudesse mesmo cumprir e, principalmente, depois de toda a saudade que eu senti e continuo sentindo até agora de todas as vidas que já tive antes disso, eu consigo perceber agora que aquela verdade que ainda carrego comigo continua fazendo jus às minhas expectativas. Muita coisa vai acontecer com você, mas não necessariamente fará sentido quando acontecer. Eventualmente, se você prestar um pouco de atenção, todas as peças do quebra-cabeça irão se encaixar e a figura que se mostrará diante dos seus olhos será totalmente diferente do que você imaginava que podia ser. No meu caso, enquanto eu esperava ansiosamente por esse dia – e acreditava que somente a partir deste dia é que a minha vida em Foz do Iguaçu realmente começaria – eu estive vivendo e muito esse tempo todo. Ah, e como eu vivi...

E agora aqui estamos. Seis meses depois, se levarmos em conta apenas os dias desde a mudança. Mas paixão, aquela de que estava falando para vocês, é algo que existe e perdura muito além do que um calendário pode contar. E desta vez eu gosto de pensar que já apanhei e aprendi o suficiente para fazer desta segunda chance, o primeiro passo da jornada que finalmente me levará aonde quero chegar. Claro que demorou para chegar até aqui – e muito. Especialmente porque eu ainda não sabia exatamente quem eu era e o que eu queria desta vida. Mas quando se começa a traçar algumas linhas na areia, as coisas vão se tornando mais claras. Quando se toma uma decisão e a apóia apesar do que os outros possam pensar, ou do medo que vem por abrir mão de todas as outras possibilidades do mundo, é aí que você começa a surgir. E a reconhecer o seu lugar, seu espaço e, enfim, quem você é.

Meu nome é Igor Costa Moresca e eu serei um escritor. Demorou muito para que eu pudesse voltar a esse momento – e eu sei disso porque, sete anos atrás, eu também escrevi sobre isso. Mas hoje é o primeiro dia de aula na faculdade de Jornalismo. E desta vez, como aprendi a fazer com todas as novas aventuras que me disponho a trilhar, eu irei até o fim.

Desafio aceito.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O soneto da fidelidade


*Escrito em 27/01/2014.

Se eu tivesse que dizer de onde tirei a idéia de começar a escrever, teria que dizer que foi da minha mãe. De vez em quando nossa casa era tomada por um silêncio estranho, e digo estranho porque passei grande parte da infância sendo constantemente interrogado por ela aos gritos:

- Filhoooo, que tá fazendo?
- Nada, mãe...
- Tá muito quetooo!
- Sou quieto, mãe...
- Não é nãaaao! Vem aqui fazer companhia pra mamãeeee!

Sempre havia alguém gritando dentro de casa, mas num bom sentido, salvas as vezes em que já estávamos reunidos em algum cômodo, hipnotizados pela inércia da televisão. Por isso silêncios eram estranhos. Mas em vês de gritar “Mãeeee, que tá fazendooo?”,  eu optava por ir até a sala e investigar qual era o motivo daquela calmaria. Mamãe morreu? Não. Mamãe estava sentada à mesa, com um caderno de rascunho em mãos, escrevendo algo.

- O que é isso aí, mãe?
- É um dos poemas favoritos da mamãe, filho.
- Como se chama?
- "Soneto da Fidelidade" de Vinicius de Moraes. Você vai ouvir falar muito dele na escola.

Nota #1: quando me refiro à mamãe como "mamãe", é porque estou me colocando aqui no tempo dos meus 10 ou 11 anos. Eu não chamo mais mamãe assim... Só quando ela manda, é claro.

- Do que se trata esse poema, mamãe?
- É uma declaração de amor, filho. Uma das declarações de amor mais bem escritas que já se viu...

Minha mãe era fã do Vinicius; tanto que sabia de cor aquele poema, de cor e de coração. Este e outros poemas eram apenas parte da coletânea que ela havia reescrito naquele caderno. Inspirado por isso, tentei fazer o mesmo, nem que fosse só para descobrir se minha memória era boa o bastante para recordar de quatro estrofes consecutivas sem esquecer de nenhuma vírgula ou lamúria. Não era. E até hoje, permaneço com apenas as molduras do poema em minha mente distorcida - a primeira e a última linha - que, de alguma forma, faziam sentido para mim sem o corpo do texto.

“De tudo ao meu amor serei atento [...] mas que seja infinito enquanto dure."

Mal sabíamos, minha mãe e eu, que aquele momento viria a se tornar o marco zero de uma das características mais marcantes e questionáveis da minha personalidade futura: a atração por declarações de amor, e o desconhecimento do que acontece entre o começo e o fim de um relacionamento. Independente se estiver na forma de poemas ou pessoas.

Eu me sinto consideravelmente criativo em se tratando dos começos das histórias de amor que já vivi. Os ambientes inusitados, as personagens cativantes, o contexto irresistível. À primeira vista parece até que nada daquilo tem sentido quando colocado tudo junto e misturado, mas tinha. Foi assim com a Fulana, com a Ciclana, com a Beltrana e com a - digamos - Amélia. Mas como diria Saint-Exupéry, era tudo muito bonito, muito poético, mas sem muita utilidade. Porque assim como meus começos eram dignos de refilmagens de contos da Disney, meus fins eram igualmente épicos em matéria de tragicomédia. Trágico porque era o fim de um amor, mas cômico porque ainda se tratava de mim. E não importa aonde eu vá, o constrangimento, a ironia e - como se provou recentemente - acidentes estranhos envolvendo telhas voadoras sempre me seguirão. Logo não era surpresa pra ninguém que, quando meus romances terminassem (já não é mais uma questão de "se", mas de "quando" mesmo), podia-se ter certeza de que teria mais uma boa história pra contar na mesa do bar. Como quando a Fulana se mudou pra Florianópolis, a Ciclana voltou pro ex, a Beltrana acabou sendo louca, e a - digamos - Amélia decidiu que nosso amor sequer tinha existido.

Aconteceu que eu me lembrei de tudo isso - da mamãe, dos gritos em casa, do soneto da fidelidade, dos romances épicos propensos ao óbito literário - por causa da Amélia. Porque dia desses, já passados meses desde o funeral do nosso relacionamento, a Amélia resolveu reaparecer. Meses antes eu tentei uma reconciliação hipotética com a Amélia, e digo hipotética porque me agarro sagradamente no uso contínuo das palavras "se" e não "quando" durante nosso diálogo. “Se nós estivéssemos juntos”, ao contrário de “Quando nós estivermos juntos de novo” possui grande diferença nos argumentos quando for apresentar seu caso ao tribunal de apelações de relacionamentos fracassados. Ou quando for explicar aos seus amigos o que aconteceu depois que você chegou no bar estressado e jurando nunca mais amar de novo. Mas quando eu procurei a Amélia de novo, ela não quis saber de mim. E foi tão cruel e vingativa quanto uma mulher naturalmente sabe ser.

Nota #2: não entenda, sob nenhuma circunstância, que eu esteja em algum momento julgando a atitude impiedosa de Amélia. Dada a minha participação no enterro da nossa cumplicidade, achei a reação dela não só justificável como bastante nobre também. Mulheres ainda mais impiedosas não responderiam a nenhum apelo. Mulheres ainda mais impiedosas responderiam a isso com um fósforo, gasolina e um bom álibi para confirmar onde estavam quando o incêndio no meu apartamento começou.

Três meses depois, ali estava ela. Sua janela de conversação apareceu na minha tela com a mesma naturalidade que costumava aparecer durante todos os dias em que ainda gostávamos um do outro. E me disse um "Olá, Igor..." que era tudo, menos inofensivo.

Mesmo sem ter tanta experiência assim em se tratando de relacionamentos e suas respectivas regras de convivência, eu aprendi que em hipótese alguma é possível manter alguma espécie de vínculo saudável com uma ex-namorada. Não adianta vocês quererem se convencer de que são pessoas adultas, maduras e sensatas que participam ativamente da sociedade moderna do século XXI. Porque em algum momento as lembranças das mãos dadas, dos beijos trocados e das pernas descobertas pelo lençol irão te alcançar. Assim como as discussões infames, os discursos prontos e as dores de cabeça que o amor – ah, o amor! – um dia se virou contra você e te fez questionar se precisava mesmo passar por isso. Tudo faz parte do processo natural da vida, como já dita a própria física: dois corpos que decidiram se separar tendem a permanecer distantes. Namoros, compromissos e casamentos duram o tempo que você conseguir se esforçar para mantê-los. Separações, despedidas e divórcios são para sempre. Sem querer parecer horrivelmente cínico; é só uma observação de quem não viveu muito, mas viu muita coisa por aí capaz de me desmotivar a querer tentar entregar meu coração de bandeja para outra pessoa, assim, com a maior facilidade do mundo, sem ter medo de que ela o jogue no chão, atropele com o carro, chame amigos para fazerem manifestações populares em cima dele, e depois aponte e dê risada. Mas eu posso estar exagerando...

Só que quando a Amélia me chamou, todas as teorias, as lembranças ruins e até mesmo a própria realidade se tornaram irremediavelmente questionáveis. Um “Olá” depois de três meses? Um “Olá” aparentemente despretensioso depois de tanto tempo e tanta coisa? Um “Olá” depois de ter me dito “Nunca mais me procure, nem tivemos nada sério, vai cuidar da sua vida e me esqueça!” definitivamente queria dizer algo a mais.

- Olá, Amélia... Tudo bem?
- Tudo bem e com você?
- Tudo bem...
- Então... Eu só queria dizer que sinto muito pelo jeito que te tratei na nossa última conversa... Foi cruel da minha parte e me sinto mal por fazer isso com alguém. Saiba que só guardo lembranças boas do nosso tempo juntos agora, e espero que você encontre o seu amor logo...

Era uma noite de domingo de um fim de mês de férias. Era o ápice do tédio, do calor de Janeiro e da temporada de mariposas atraídas pela luz do quarto. Era o momento mais insosso para uma conversa desse tipo. Era tudo que eu jamais esperava ouvir, depois das últimas palavras que Amélia havia me dito três meses atrás. “E você pensou nisso por três meses, Amélia, ou sentiu meu perfume em alguém quando pegou seu ônibus de volta pra casa e repentinamente se lembrou de mim, de nós, e das coisas boas que compartilhamos antes de todo aquele asco, todo aquele drama? Todo aquele fim que, pelo visto, não tinha fim”, pensei.

Difícil dizer exatamente o que eu senti. Saudade, raiva, compaixão? Por ela? Por mim? Por nós? Eu não sei. Só o que sei foi que, naquele momento, minha memória imediatamente me levou de volta a imagem da mamãe reescrevendo aquele poema do Vinicius, sentada à mesa da sala, e as molduras que desde sempre remetiam a mim o prelúdio e o desfecho de uma história de amor. Pra ficar perfeito mesmo só faltava o interlúdio, o enredo, a história em si. O desenvolver desse amor que, mesmo depois de tanto tempo desde a primeira vez que li o poema e tentei reescrevê-lo, eu ainda não era capaz de produzir. Certamente sou capaz de grandes epílogos de paixões memoráveis, bem como a implosão dos mesmos sentimentos através de proporções homéricas. Mas eu, definitivamente, deveria ter me esforçado mais com o interlúdio...

“De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.”

O que me alivia de certa forma é saber que a Amélia vai ficar bem, apesar de mim. O que me enlouquece, por outro lado, é pensar que talvez eu me torne mesmo um mestre dos romances, dominando com maestria aquela primordial troca de olhares até a decadência de dois corações, sem nunca realmente descobrir o que o Vinicius vem tentando me dizer há anos. Não é o começo do amor que importa, muito menos o seu fim. É o que você faz para mantê-lo, todos os dias, a cada vão momento da nossa existência, que faz toda a diferença.

Nota #3: ou talvez seja melhor ir para a cama à noite com mais beijos e menos literatura, só pra variar um pouco.