Eu gosto de
pensar que sou uma pessoa tolerante, mesmo com os comentários impensados, sarcásticos
e eventualmente desnecessários que eu costumo soltar por aí para quem quiser pegar
para criar e se ofender para sempre. Apesar disto, eu fui criado com toda a
educação e respeito possíveis, resultantes dos meus pais que se separaram há
muito tempo, mas que em momento algum deixaram que isto influenciasse o modo
como eu trataria os outros. Meu pai é daqueles que segura a porta para todos
entrarem antes dele, perpetuando o cavalheirismo em extinção, e minha mãe é
daquelas que dá “boa noite” até para o William Bonner, levando adiante as boas maneiras
até quando não necessariamente são cabíveis ao momento.
São pequenos
exemplos que dizem muito sobre quem são como pessoas, e são estes e muitos
outros fragmentos da sua criação que carrego comigo hoje e, entre discussões
sem sentido e olhares irônicos, é o que tento reproduzir entre as pessoas com
quem eu convivo. E só para deixar bem claro também: o meu desengajamento
político nada tem a ver com a minha criação, visto que meus pais sempre foram
muito claros em ressaltar a importância de saber o que está acontecendo no
mundo lá fora – especialmente o meu pai, que nunca perdeu a chance de me chamar
de alienado quando eu provava ser insuportavelmente chato enquanto ele assistia
seus noticiários até finalmente ceder o controle da televisão para que eu
pudesse trocar de canal para qualquer outra distração animada. Enfim, são
histórias que quase toda “família
tradicional” deve ter para contar. E repare bem na ênfase do “quase” e nas aspas
que separam a famigerada expressão acima do resto do texto, porque é disso que
eu preciso comentar.
Porque logo
eu que assisto e leio menos jornais do que deveria, mas que não estou
completamente alheio ao resto da humanidade, me senti particularmente atingido
pelas notícias desta semana sobre um
projeto aprovado pela câmara dos deputados que, ao ser aprovado, definiu que
não só as minhas histórias mas de grande parte da população, não valem nada. O
que conseqüentemente anula não só mais da metade do país, mas também uma porção
de sentimentos que vão muito, mas muito além do tal poder legislativo. Mesmo
sendo consideravelmente tolerante em relação às opiniões, gostos e desgostos
dos outros, eu não me considero anulado por nenhum projeto de lei e ainda me atrevo
a dizer que talvez existam apenas duas únicas definições universais sob às
quais estamos todos à mercê: a vida e a morte. O resto é circunstancial e, sinceramente,
pessoal.
Posso não
ser a pessoa mais adequada para afirmar tais conclusões, ainda mais segundo
nosso novo estatuto que invalida totalmente o que eu poderia afirmar ou não,
mas acho que até os menos informados do que eu tem liberdade de abrir alguns
parênteses nesta imposição para questioná-la. E não quero causar nenhum tumulto;
não mesmo. Longe disto, prefiro aceitar opiniões contrárias porque cada um tem
direito de pensar e acreditar no que quiser. É claro, desde que você saiba
aonde os seus dogmas terminam e os do outro começam. Respeito tem uma tradição
muito mais favorável do que as maneiras que as pessoas tem de se organizar ou
até mesmo de sobreviver.
A definição
de família, ou de qualquer outra composição social, vai muito mais além do que
uma votação em um plenário pode estabelecer. E não quero nem entrar nos
milhares de exemplos específicos que contradizem este estatuto porque,
sinceramente, esta é uma discussão que não precisamos ter. E se você é um pouco
mais atento às diversas calamidades que assombram o Brasil hoje, sabe
exatamente do que mais nós poderíamos estar falando. Agora, declarar que algo
tão íntimo e pessoal está limitado a uma “lei” para ser verdadeiro ou não, é
mais do que assustador; deveria ser visceralmente ilegal. E digo isso como um
cidadão brasileiro que não quer comprar briga com ninguém, porque não foi assim
que a minha “família” me criou – aderindo aqui à nova regra que respingou até na
ortografia – mas quem sabe um pouco mais de sensibilidade para se dirigir às
famílias brasileiras, sejam elas como forem, deva ser o próximo assunto da
pauta da câmara dos deputados.
Porque não
cabe a vossas senhorias, nem a ninguém na verdade, julgarem como pais, mães e
filhos se definem. Obrigado.