sábado, 26 de setembro de 2015

A definição de família


Eu gosto de pensar que sou uma pessoa tolerante, mesmo com os comentários impensados, sarcásticos e eventualmente desnecessários que eu costumo soltar por aí para quem quiser pegar para criar e se ofender para sempre. Apesar disto, eu fui criado com toda a educação e respeito possíveis, resultantes dos meus pais que se separaram há muito tempo, mas que em momento algum deixaram que isto influenciasse o modo como eu trataria os outros. Meu pai é daqueles que segura a porta para todos entrarem antes dele, perpetuando o cavalheirismo em extinção, e minha mãe é daquelas que dá “boa noite” até para o William Bonner, levando adiante as boas maneiras até quando não necessariamente são cabíveis ao momento.

São pequenos exemplos que dizem muito sobre quem são como pessoas, e são estes e muitos outros fragmentos da sua criação que carrego comigo hoje e, entre discussões sem sentido e olhares irônicos, é o que tento reproduzir entre as pessoas com quem eu convivo. E só para deixar bem claro também: o meu desengajamento político nada tem a ver com a minha criação, visto que meus pais sempre foram muito claros em ressaltar a importância de saber o que está acontecendo no mundo lá fora – especialmente o meu pai, que nunca perdeu a chance de me chamar de alienado quando eu provava ser insuportavelmente chato enquanto ele assistia seus noticiários até finalmente ceder o controle da televisão para que eu pudesse trocar de canal para qualquer outra distração animada. Enfim, são histórias que quase toda “família tradicional” deve ter para contar. E repare bem na ênfase do “quase” e nas aspas que separam a famigerada expressão acima do resto do texto, porque é disso que eu preciso comentar.

Porque logo eu que assisto e leio menos jornais do que deveria, mas que não estou completamente alheio ao resto da humanidade, me senti particularmente atingido pelas notícias desta semana sobre um projeto aprovado pela câmara dos deputados que, ao ser aprovado, definiu que não só as minhas histórias mas de grande parte da população, não valem nada. O que conseqüentemente anula não só mais da metade do país, mas também uma porção de sentimentos que vão muito, mas muito além do tal poder legislativo. Mesmo sendo consideravelmente tolerante em relação às opiniões, gostos e desgostos dos outros, eu não me considero anulado por nenhum projeto de lei e ainda me atrevo a dizer que talvez existam apenas duas únicas definições universais sob às quais estamos todos à mercê: a vida e a morte. O resto é circunstancial e, sinceramente, pessoal.

Posso não ser a pessoa mais adequada para afirmar tais conclusões, ainda mais segundo nosso novo estatuto que invalida totalmente o que eu poderia afirmar ou não, mas acho que até os menos informados do que eu tem liberdade de abrir alguns parênteses nesta imposição para questioná-la. E não quero causar nenhum tumulto; não mesmo. Longe disto, prefiro aceitar opiniões contrárias porque cada um tem direito de pensar e acreditar no que quiser. É claro, desde que você saiba aonde os seus dogmas terminam e os do outro começam. Respeito tem uma tradição muito mais favorável do que as maneiras que as pessoas tem de se organizar ou até mesmo de sobreviver.

A definição de família, ou de qualquer outra composição social, vai muito mais além do que uma votação em um plenário pode estabelecer. E não quero nem entrar nos milhares de exemplos específicos que contradizem este estatuto porque, sinceramente, esta é uma discussão que não precisamos ter. E se você é um pouco mais atento às diversas calamidades que assombram o Brasil hoje, sabe exatamente do que mais nós poderíamos estar falando. Agora, declarar que algo tão íntimo e pessoal está limitado a uma “lei” para ser verdadeiro ou não, é mais do que assustador; deveria ser visceralmente ilegal. E digo isso como um cidadão brasileiro que não quer comprar briga com ninguém, porque não foi assim que a minha “família” me criou – aderindo aqui à nova regra que respingou até na ortografia – mas quem sabe um pouco mais de sensibilidade para se dirigir às famílias brasileiras, sejam elas como forem, deva ser o próximo assunto da pauta da câmara dos deputados.


Porque não cabe a vossas senhorias, nem a ninguém na verdade, julgarem como pais, mães e filhos se definem. Obrigado.