segunda-feira, 23 de maio de 2016

Apartamento 101


Anos atrás eu descobri a sutil diferença que existe entre uma casa e um lar. Uma casa pode ter cômodos espaçosos ou apertados, janelas que controlam a entrada do sol, papéis de parede ou cores que cubram a opacidade dos rebocos e tijolos. Enfim, pode ser feita de várias coisas, mas nunca realmente passará de uma estrutura. O que irá estruturar, por outro lado, é o que nos leva a descobrir o que torna uma casa qualquer em um lar singular, único. Especial em vez de meramente espacial. Acolhedor ao contrário de apenas acessível. Mais seguro do que limitadamente fechado sob um telhado e trancado por uma porta. Para ser importante é preciso ser significativo. E para alcançar um significado é preciso vida. Lares possuem vida. Casas, apenas moradores.

Esta é literalmente a centésima vez que me coloco a escrever sobre isto. A história que venho construindo a quase um ano em Foz do Iguaçu, depois de deixar uma vida – e seu respectivo lar – para trás, em nome de um sonho que perdi entre mudanças de endereço e ruínas de planos desfeitos. E passei a fazer isso porque deu certo uma vez; reler sobre os dramas dos primeiros dias, o nervosismo das primeiras vezes, e a ansiedade dos primeiros contatos fazia com que eu me sentisse menos deslocado em um apartamento que ainda não parecia ser nada meu. Parecia ser só um conjunto de quartos em que não havia nada reconhecível dentro deles, em um prédio cujos vizinhos eu ainda não cumprimentara direito, em uma cidade estranha e distante de tudo que eu considerava seguro.

Se você, assim como eu, acompanha esta história desde o primeiro capítulo, então já está cansado de saber como tudo começou. Talvez até mesmo você, que só surgiu depois de eu já ser capaz de reunir algumas coletâneas de amor, saudade e esperança, também esteja sentindo um pouco do tédio que eu passei a sentir ultimamente. Porque tudo que poderia ter sido feito pela primeira vez parece já ter sido vivido, escrito e traduzido em músicas para acompanhar os diários da viagem. Mas este é um momento especial, embora não tenha o mesmo charme e encanto de algo novo. Nem toda a originalidade reside em experiências frescas. Alguns marcos só são possíveis mesmo alguns capítulos adiante no livro, quando o personagem atinge uma retórica sobre si mesmo que era incapaz de perceber enquanto estava desbravando um novo mundo.
***

Depois de escrever noventa e nove vezes sobre o quanto o começo é a pior parte de qualquer coisa, eu finalmente descobri o porquê. Eu me sentia tão perdido quando cheguei em Foz do Iguaçu ao ponto do desconforto passar para raiva – quase ecoando os cinco estágios de luto por uma perda. Mas não era uma perda, porque fui eu quem escolhi mudar. Fui eu quem escolhi, enfim, correr atrás da vida que eu gostaria de ter em vez de me conformar com apenas o que poderia ser. E então eu me dei conta de uma verdade universal: as pessoas mudam quando querem, as circunstancias não. E a minha negação, raiva, barganha e depressão estavam diretamente ligados à perdição que me ocasionaram, e o luto pelo controle que não era capaz de ter enquanto não conhecesse esta cidade bem o bastante.

Mas... Quando, ou melhor, aonde foi exatamente que eu estive sob controle de alguma coisa?

Controlamos a nossa vida tão ilusoriamente como pensamos que fazemos com as coisas e as pessoas nela. E o meu pavor por depender de algo ou de alguém sempre me motivou a fazer o que precisasse para manter a minha auto-suficiência em cheque; algo que nunca deu, nem nunca dará certo pra ninguém. Por isso pedir ajuda sempre foi sinônimo de desistência para mim, quando na verdade não há sequer um dicionário que a traduza assim. Mas durante os anos que morei e vivi sozinho, pedir ajuda literalmente significava ter de ir ao alcance de algo que estava fora da minha realidade – o que fazia parecer que o meu mundo por si só não era o bastante para solucionar um problema ou abafar um choro de saudade. Eu vivi sozinho por tempo o suficiente para me tornar hábil em dificuldades técnicas, ao custo de que isto significava para mim que não era necessária a participação de outra pessoa. E pedir ajuda tornou-se tão infame quanto admitir derrota para mim mesmo.

A verdade é que eu nunca realmente estive sob controle de nada, e é pela centésima vez que chego à realização de que sempre me senti sozinho. Só que desta vez é diferente. E no ápice das primeiras vezes que já vivi nesta cidade, esta é aquela em que eu aceito que viver sozinho é impossível. Seja aqui ou em qualquer lugar em que eu ainda vá parar.


***

Já faz tempo que os meus dias no apartamento 316 terminaram, mas sentir saudade é diferente de entender que ela sempre fará parte de mim. Felizmente isto é algo que existe à parte de tudo o que eu criei para mim aqui, no apartamento 101: refeições com a família sentada à mesa, finais de semana com amigos antigos que visitam, cafés da tarde com amigos novos que até o porteiro já reconhece, maratonas de séries, brindes com vinho argentino e, agora, cem capítulos de uma história que ainda parece estar só começando. O que separa casas de lares, e viver ao contrário de apenas morar neles, é o mesmo que encerra a transição entre lutos e recomeços: aceitar que as coisas podem melhorar com as mudanças.

Talvez eu também já tenha escrito isso cem vezes, mas eu me sinto melhor agora.