Anos atrás eu descobri a sutil
diferença que existe entre uma casa e um lar. Uma casa pode ter cômodos
espaçosos ou apertados, janelas que controlam a entrada do sol, papéis de
parede ou cores que cubram a opacidade dos rebocos e tijolos. Enfim, pode ser
feita de várias coisas, mas nunca realmente passará de uma estrutura. O que irá
estruturar, por outro lado, é o que nos leva a descobrir o que torna uma casa
qualquer em um lar singular, único. Especial em vez de meramente espacial.
Acolhedor ao contrário de apenas acessível. Mais seguro do que limitadamente
fechado sob um telhado e trancado por uma porta. Para ser importante é preciso
ser significativo. E para alcançar um significado é preciso vida. Lares possuem
vida. Casas, apenas moradores.
Esta é
literalmente a centésima vez que me coloco a escrever sobre isto. A história
que venho construindo a quase um ano em Foz do Iguaçu, depois de deixar uma
vida – e seu respectivo lar – para trás, em nome de um sonho que perdi entre mudanças
de endereço e ruínas de planos desfeitos. E passei a fazer isso porque deu
certo uma vez; reler sobre os dramas dos primeiros dias, o nervosismo das
primeiras vezes, e a ansiedade dos primeiros contatos fazia com que eu me
sentisse menos deslocado em um apartamento que ainda não parecia ser nada meu. Parecia
ser só um conjunto de quartos em que não havia nada reconhecível dentro deles,
em um prédio cujos vizinhos eu ainda não cumprimentara direito, em uma cidade estranha
e distante de tudo que eu considerava seguro.
Se você,
assim como eu, acompanha esta história desde o primeiro capítulo, então já está
cansado de saber como tudo começou. Talvez até mesmo você, que só surgiu depois
de eu já ser capaz de reunir algumas coletâneas de amor, saudade e esperança,
também esteja sentindo um pouco do tédio que eu passei a sentir ultimamente. Porque
tudo que poderia ter sido feito pela primeira vez parece já ter sido vivido,
escrito e traduzido em músicas para acompanhar os diários da viagem. Mas este é
um momento especial, embora não tenha o mesmo charme e encanto de algo novo.
Nem toda a originalidade reside em experiências frescas. Alguns marcos só são
possíveis mesmo alguns capítulos adiante no livro, quando o personagem atinge
uma retórica sobre si mesmo que era incapaz de perceber enquanto estava
desbravando um novo mundo.
***
Depois de
escrever noventa e nove vezes sobre o quanto o começo é a pior parte de
qualquer coisa, eu finalmente descobri o porquê. Eu me sentia tão perdido
quando cheguei em Foz do Iguaçu ao ponto do desconforto passar para raiva –
quase ecoando os cinco estágios de luto por uma perda. Mas não era uma perda,
porque fui eu quem escolhi mudar. Fui eu quem escolhi, enfim, correr atrás da
vida que eu gostaria de ter em vez de me conformar com apenas o que poderia
ser. E então eu me dei conta de uma verdade universal: as pessoas mudam quando
querem, as circunstancias não. E a minha negação, raiva, barganha e depressão
estavam diretamente ligados à perdição que me ocasionaram, e o luto pelo
controle que não era capaz de ter enquanto não conhecesse esta cidade bem o
bastante.
Mas...
Quando, ou melhor, aonde foi exatamente que eu estive sob controle de alguma
coisa?
Controlamos
a nossa vida tão ilusoriamente como pensamos que fazemos com as coisas e as
pessoas nela. E o meu pavor por depender de algo ou de alguém sempre me motivou
a fazer o que precisasse para manter a minha auto-suficiência em cheque; algo
que nunca deu, nem nunca dará certo pra ninguém. Por isso pedir ajuda sempre
foi sinônimo de desistência para mim, quando na verdade não há sequer um
dicionário que a traduza assim. Mas durante os anos que morei e vivi sozinho,
pedir ajuda literalmente significava ter de ir ao alcance de algo que estava
fora da minha realidade – o que fazia parecer que o meu mundo por si só não era
o bastante para solucionar um problema ou abafar um choro de saudade. Eu vivi
sozinho por tempo o suficiente para me tornar hábil em dificuldades técnicas,
ao custo de que isto significava para mim que não era necessária a participação
de outra pessoa. E pedir ajuda tornou-se tão infame quanto admitir derrota para
mim mesmo.
A verdade é
que eu nunca realmente estive sob controle de nada, e é pela centésima vez que
chego à realização de que sempre me senti sozinho. Só que desta vez é
diferente. E no ápice das primeiras vezes que já vivi nesta cidade, esta é
aquela em que eu aceito que viver sozinho é impossível. Seja aqui ou em
qualquer lugar em que eu ainda vá parar.
***
Já faz tempo
que os meus dias no apartamento
316 terminaram,
mas sentir saudade é diferente de entender que ela sempre fará parte de mim.
Felizmente isto é algo que existe à parte de tudo o que eu criei para mim aqui,
no apartamento 101: refeições com a
família sentada à mesa, finais de semana com amigos antigos que visitam, cafés
da tarde com amigos novos que até o porteiro já reconhece, maratonas de séries,
brindes com vinho argentino e, agora, cem capítulos de uma história que ainda
parece estar só começando. O que separa casas de lares, e viver ao contrário de
apenas morar neles, é o mesmo que encerra a transição entre lutos e recomeços:
aceitar que as coisas podem melhorar com as mudanças.
Talvez eu também já tenha escrito isso cem vezes, mas eu me sinto melhor agora.