Para a entrada, uma porção de contexto.
Dizem que a
necessidade é a mãe de todas as invenções, e se este for mesmo o caso, o tédio
existencial só pode ser o pai. Porque depois de anos morando sozinho a base de
misto quente e lasanhas congeladas, nenhum impulso de sobrevivência sequer me
motivou de tentar produzir algo utilizando o fogão que não fosse pipoca. Isto
ainda quando estivesse me sentindo mais aventureiro do que o habitual, pois
além de ser algo relativamente simples, ainda conseguia queimar a pipoca e o
fundo da panela.
Enfim,
cozinhar nunca foi o meu forte. Nunca nem foi o meu fraco – era apenas algo que
eu subtraí por completo da minha vida, junto a outras necessidades que sempre
pareceram mais supérfluas para mim do que o habitual para outras pessoas. Assim
como dirigir, economizar ou relacionamentos bem resolvidos, não era algo que
parecia chegar ao nível de commodity, até mesmo quando fazia falta; fosse para
ajudar a ir de um lugar para outro, para comprar algo fora do orçamento
cotidiano, ou para ter uma companhia que não me fizesse questionar toda a minha
existência neste mundo.
Precisar de
algo, ao contrário do que dizem ser eficaz no processo de resolução de
problemas, nunca me levou a tal resultado. Pelo contrário; precisar de algo ou
de alguém me causa mais pavor do que inspiração. A pressão até ajuda a
desenvolver certos fluxos criativos em mim, mas definitivamente não consegue
ser tão eficaz quanto o ócio. É na inércia, na rotina e no desespero silencioso
em que eu realmente prospero. E talvez exista o argumento de que isto nada mais
seja do que a necessidade de sair do ócio, mas a física é clara: um corpo em
repouso tende a continuar em repouso. E eu não deixo o meu repouso porque
preciso, especialmente em dias invernais como estes. No fim até os meus
próprios instintos são feitos reféns do meu existencialismo recorrente. Só me
submeterei às minhas vontades ditas como inerentes quando eu mesmo decidir
isto.
***
Prato
principal: psicologia à moda da casa.
A
psicanálise concebe o processo de sublimação como parte do desenvolvimento humano
cuja ocorrência habitual se dá durante o período da adolescência; a produção de
hormônios em grande escala além de amadurecer o corpo, também causa com que
este procure meios de gastar toda a energia extra que produz. Como o
amadurecimento sexual é mais gradual do que o jovem gostaria, este acaba por
praticar esportes ou a se concentrar mais nos estudos para aproveitar seu
superávit de stamina. Ou ele só
começa a se masturbar com mais freqüência mesmo. E quando finalmente chegam à
idade adulta, as pessoas passam a sublimar sua energia acumulada de outras
maneiras, invariavelmente exageradas. Eis os workaholics, os ansiosos, os alcoolotras, as pessoas insuportavelmente
otimistas que acordam cantando, e os que se masturbam frequentemente até hoje.
Isto quando não encontram outra pessoa tão incansável quanto eles para trocar a
partida de cinco contra um por uma a dois.
Foi o que
aconteceu com a minha fome. Além da necessidade diária de me alimentar, a fome
por algo novo me motivou a buscar um novo extremo em algo familiar – talvez para
harmonizar com os outros modos extremos sob os quais eu levo a minha vida. E
assim começaram a surgir anotações de receitas no meu quadro de recados,
ingredientes que nunca antes compuseram minhas listas de compras no mercado, e fotos
de comida no lugar de selfies em meu Instagram.
O que
começou com uma vontade de fazer minha própria pizza certa noite evoluiu para uma
tentativa de fazer arroz. Que logo evoluiu para um strogonoff. Que abriu brecha
para um macarrão. Que, por sua vez inspirou um conchiglione. Seguido por
panquecas, lasanhas... Até que passei a visitar setores que sempre ignorei nos
mercados para procurar por produtos estrangeiros para mim: orégano, azeite,
salsinha, cebolinha, páprica, molho inglês... E então passei a testar técnicas
para temperar, selar e reduzir ingredientes na panela, depois que só misturá-los
e cozinhá-los perdeu a graça. Logo passei para a confeitaria: bolos simples a
princípio, seguido por bolos com cobertura, bolos com cobertura e recheio... Cozinhar não parecia mais
uma arte tão indomável. Aliás, já parecia normal, costumeiro, rotina...
***
Sobremesa: um
mousse de ironia.
Dia desses,
enquanto experimentava uma receita de ganache para cobrir um bolo de chocolate
que havia feito, eu percebi que levara meu novo passatempo a fronteiras que
nunca pensei que seria capaz de atravessar. E ainda havia muito a ser
descoberto, testado e experimentado, mas aquele gosto de novidade não parecia
mais estar disposto na cozinha. Talvez eu o pesei demais em algum molho que
fiz, ou talvez eu simplesmente o perdi de vez. Seja lá o que fosse, parecia que
eu havia voltado exatamente aonde comecei. Ao ingrediente-chave das minhas
aventuras culinárias: uma boa dose de tédio que, como era de se esperar, estava
muito sem sal.
Logo eu
encontrarei outra maneira de sublimar o meu vazio interior. Enquanto isso, vou
enchê-lo de bolo. O que não me mata de tédio, engorda.