Dia desses
eu estava na Argentina – e digo isso com aquele ar de rotina, porque Foz do
Iguaçu está começando a causar isso em mim – quando entrei em um mercadinho
onde costumo comprar vinhos importados à custo de Canção e fui abordado pela
atendente que pareceu me reconhecer. Em instantes ela fez questão de me
direcionar ao corredor dos vinhos e me apontou uma caixa fechada com seis
unidades, pronta para ser passada no caixa. Quando outro atendente veio
chamá-la, ela comentou algo com ele sobre mim que, de volta ao Brasil, eu
procurei traduzir. Foi algo do tipo “este
é aquele rapaz que sempre leva Pinot Noir!”, e me fez pensar em duas
coisas. Primeiro: talvez eu não seja mais tão estrangeiro assim na terra das
Cataratas. Segundo: agora é oficial – minha bebedeira tem fama internacional.
***
Faz algum
tempo que eu não escrevo. E como já era de se esperar, a culpa é do Outubro. O
mês das crianças, de Nossa Senhora Aparecida, da mudança para o horário de
verão, de eleições a cada quatro anos e, inevitavelmente, do meu aniversário. É
a época do ano em que eu indeliberadamente me ponho a tirar um extrato da minha
vida e me deprimo quando insisto em enxergar um saldo negativo. Só que ao
reconsiderar meus últimos balanços dos anos anteriores, acho que fui bem mais
rico do que pude admitir. Visto que nesta última transação, foram subtraídos do
meu caixa um emprego, um apartamento, um relacionamento e mais uma cidade. E eu
admito que isto faz parte de um investimento a longo prazo para ganhos ainda
maiores do que os que já conheci, mas é difícil ser otimista em tempos de
crise. Especialmente as existenciais.
***
Levaram
quase vinte dias, três cidades e dois países, mas eu finalmente decidi
enfrentar minha negação diante de mais uma folha em branco do Word para
escrever sobre o que está me incomodando. Eu andei viajando bastante; fui para
casa por uns dias e depois, bom, visitei minha outra casa antes de, an...
Voltar para casa de novo. E é claro que eu me perdi entre um ônibus e outro, em
mais uma daqueles devaneios do tipo “não
sei mais aonde é o meu lugar”, etc, etc. E estou driblando os parágrafos de
angústia e nostalgia porque já não ficam mais tão bem para alguém da minha
idade. Jovem, porém com um nível de maturidade que não permite mais tanta
lenga-lenga sobre o passado, mudanças e afins. A vida é o que é e a gente faz o
que pode. No meu caso, estou fazendo o que posso para chegar no que quero ser.
E esta é toda a metafísica que teremos aqui por enquanto.
Passei por
Londrina para visitar a família, depois fui para Cascavel para rever os amigos,
até finalmente voltar para Foz do Iguaçu, onde... Onde as reticências ainda
dominam. Nada realmente me mantém aqui, e é isso que respondo quando me
perguntam “Por que você não volta para
[cidade em que estou no momento da pergunta]?
O que está fazendo em Foz do Iguaçu?”.
“Nada.”
E é isso que
me incomoda. Nem tanto pelo aniversário, ou o calor infernal, ou as tentativas
das baratas de darem uma festa surpresa para mim na área de serviço do
apartamento. É o nada. Eu não sou a melhor pessoa para lidar com perdas ou
fracassos, mas ao menos consigo enxergar alguma metáfora para me reconfortar
enquanto eles não passam. Mas quando nada acontece... Nada é insignificante,
intransitivo, imóvel. O que eu deveria aprender com isto? Paciência? Já passamos
deste ponto, Vida, você sabe disso. Se virtudes são como lições que devemos
aprender para crescer na vida, “paciência”
seria equivalente aos 25% de falta que posso ter durante o curso.
***
Aí eu voltei
para Foz do Iguaçu e tentei recuperar o feito que havia alcançado antes das
andanças por aí, ao me colocar na minha trilha de corrida em direção aos 10 km
mais uma vez. Às vezes a minha inocência/ignorância me protege de sentir o real
impacto das decepções do mundo, mas não desta vez. Desta vez a incapacidade de
correr me deixou ainda mais deprimido. E me mantive assim por uns dois dias até
resolver tentar de novo, graças ao calor infernal que me obrigou a sair de casa
para redescobrir o fenômeno do vento, mesmo que eu mesmo tivesse que criá-lo.
Correndo
mais lentamente até o meu percurso habitual, me deparei com outros dois
corredores há poucos metros na minha frente. E nem precisei me forçar muito
para não tentar competir com eles – como eu fiz daquela outra
vez – pois não parecia haver muito fôlego restando em mim para isso. Apenas
continuei correndo, lentamente e continuamente, até chegar a um trecho do
caminho que eu simplesmente nunca havia conseguido atravessar correndo direto.
Eram uns quinhentos metros aproximadamente em que meu corpo automaticamente
desacelerava até voltar a andar antes de retomar a corrida em outro trecho, e
era algo que se repetia todas as vezes a cada corrida. Exceto por aquela vez, a
dos 10 km, em que eu parecia imbatível.
Talvez fosse
por isso que eu estivesse tão deprimido, incapaz de continuar correndo, de
ultrapassar as outras pessoas, de escrever ou até de abandonar o sonho de fazer
disto uma profissão rentável e voltar para casa – seja lá em qual cidade isto
seja agora. Eu havia conseguido correr uma distância incrível há pouco tempo
atrás, coisa que agora parecia impossível. Bem como o emprego, o apartamento, o
relacionamento e tudo mais que eu já havia conseguido antes, que deixei para
trás em prol de reconstruir a minha vida do jeito que eu sempre quis – não
somente do jeito que podia ser feito até então. A vida não deve ser um “pode ser”; deve ser um “é isso!”. E demorou muito para que eu
finalmente entendesse que um “pode ser”
não vai me fazer feliz. “É isso!” ou
nada.
E, enfim, eu entendi.
Este é o “nada”. São os quinhentos metros em que o
meu corpo desacelera por conta própria, porque não dá conta de correr o
percurso inteiro. Pelo menos não agora. Por um dia ele conseguiu, mas a vida –
que tem seus imprevistos e, convenhamos, seus outros caminhos disponíveis para
serem trilhados mas que nem sempre levam adiante na estrada – me tirou da
rotina que eu finalmente comecei a me habituar em Foz do Iguaçu. Foi ótimo
voltar para casa – para todas elas – mas a estranheza em estar aqui de volta é
exatamente o que eu estava certo de que não poderia ser: esta cidade está
finalmente sendo familiar para mim.
Passou quase
despercebido por mim, mas eu já havia passado daquele trecho do caminho e
estava correndo de novo. E só me dei conta disto quando acidentalmente
ultrapassei os dois caras que estavam à minha frente até então.
***
De volta em
casa, em Foz do Iguaçu, eu parei para me sentir mais contente com todo o
caminho que já percorri na vida. E por ser sortudo o bastante em estar apenas
há um ônibus de distância de tudo e de todos por quem passei. Porque quando eu
volto é como se tempo nenhum tivesse passado por nós. A família ainda acolhe.
Os amigos ainda reconhecem. E parte de mim permanece com eles. Assim como eu
aprendi quando a moça do mercado argentino já reconhece de longe a minha fama
por vinhos finos e descontos quando se compra uma caixa inteira, algumas coisas
podem sim ser inesquecíveis.
Eu ainda
estou aqui.