domingo, 26 de junho de 2016

Personalidades no limite II


Alguns meses atrás, eu me peguei pensando e escrevendo sobre fronteiras. Algo corriqueiro em se tratando de uma cidade como Foz de Iguaçu, completa com saídas de emergência para não um, mas dois países à sua escolha, caso opte por fugir da nossa atual decadência geopolítica. E ao considerar o significado de fronteiras além das definições geográficas usuais, pensei sobre aquelas que eu ainda não me sentia capaz de atravessar. Sempre penso em Foz do Iguaçu como um centro de possibilidades mais amplo e internacional do que qualquer outro em que eu já vivi. Meu problema estava em descobrir exatamente o que fazer com elas.

A melhor – e talvez, a única – estratégia que bolei para mim foi, primeiramente, sair por aí e conhecer pelo menos o que havia ao redor da minha casa. Uma rua paralela aqui, uma avenida principal ali. Padarias ridiculamente extorsivas, academias que nunca freqüentarei, um bar de arguile que misteriosamente nunca parecia ter clientes. Hotéis, hostels e sacolões de hortifruti. Entre estabelecimentos de serviço e restaurantes estrangeiros, só de conhecer um pouco o meu próprio bairro já me ajudou a reconstituir meu senso de segurança. Algo que, por via de regra, é a primeira coisa a ser quebrada em toda mudança – seguido, invariavelmente, de copos e pratos mal embalados.

Sabendo por onde andar, restava encontrar uma finalidade para essas ruas. Alguém para marcar um encontro por aí, ou para simplesmente andarmos sem rumo avenida afora até a primeira curva que surgisse no nosso caminho. E por um tempo eu tive encontros (alguns bons, outros esquecíveis), conheci pessoas diferentes e aprendi a dar orientação para ajudar turistas a chegarem até o terminal de ônibus. Mas a sensação de que eu ainda era um deles permanecia comigo a cada parada. Mudar de um ponto A para o B é fácil, mas e quanto a pertencer a este lugar?

De vez em quando eu ainda me sinto um estrangeiro, tentando sobreviver entre os estabelecidos que nasceram aqui ou apenas chegaram antes de mim. Mas aí tem vezes em que eu me surpreendo quando me pego dando direções à estas mesmas pessoas. Como assim você mora aqui e nunca visitou o Templo Budista? Como assim você não sabe qual ônibus leva até o centro de visitantes das Cataratas? Como assim você não sabe aonde fica o terminal?!

A verdade é que estamos todos perdidos, em busca de algo ou alguém que nos oriente. Por anos eu fiz amizades que serviram de guias turísticos para me ajudarem a desbravar os admiráveis mundos novos que existiam dentro da nossa própria cidade. Fronteiras que, por algum motivo, não nos era interessante atravessar antes. E eu entendo isso agora. Algumas fronteiras simplesmente não foram feitas para serem atravessadas sozinho. Há quem diga, inclusive, que tal travessia solitária – em se tratando de relacionamentos – é impossível. Por que não, então, parar e pedir informação? Ou quem sabe, ter um pouco mais de iniciativa em se tratando do mundo além do seu próprio bairro – ou do seu próprio umbigo.

Eu fico constantemente maravilhado com as coisas e as pessoas que descubro por aí. Assim como fico feliz em compartilhar o meu mundo com aqueles que se interessem por anotar o meu endereço, e por vir conhecer um pouco mais sobre mim do que apenas o meu nome. Ou a minha fama de comentários sarcásticos infames que parece sempre me preceder. Há um mundo enorme lá fora, é verdade. Mas às vezes ele nem se compara ao universo que existe ao nosso lado, e a gente nem desconfia. Talvez em uma rua pela qual você nunca andou antes, ou talvez em alguém que você nunca cumprimentou.

Às vezes parece mais fácil esperar em uma fila para cruzar uma “aduana” do que tentar conhecer alguém novo. Ironicamente, a burocracia envolvida é a mesma.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

O casamento do meu melhor amigo

(2004)

- ...e aí hoje, por acaso, eu consegui puxar um assunto com ela. Mas acho que fiquei com cara de idiota o tempo todo.
- O importante é que você falou com ela, cara. E eu que não faço a mínima idéia do que dizer para a Fulana quando ela chega perto?
- Tudo bem, nós somos igualmente ridículos. Talvez esta seja a base da nossa amizade!
- Isso aí!
- Você acha que vamos continuar sendo amigos daqui dez, vinte anos? Cada um com sua esposa, seus filhos... Revezando as casas um do outro para os almoços de domingo... Claro, se a Ciclana aceitar casar comigo até lá. Mas digamos que sim.
- Sei lá. Acho que sim. Vamos esperar pra ver.
- É, melhor assim. Eu nem sei o que dizer pra chamar a atenção da Ciclana também. Vou me concentrar no meu casamento primeiro, depois te aviso que horas é o almoço no domingo.
- Fechado.

***

Eu não soube o que dizer. Não sabia nem exatamente o que sentir. Estava emocionado, é claro. Mas o choque ao perceber o quanto a vida passa rápido sem dúvidas foi o que prevaleceu naquela tarde. Porque não era um dia como outro qualquer, de uma visita aleatória à minha cidade natal. Era uma ocasião especial. Uma cerimônia. Uma celebração que reuniu parentes e amigos para comemorar algo que eu tive a honra e a sorte de presenciar do primeiro banco da igreja, com a vista direta e privilegiada do altar. Não, não era mesmo um dia qualquer. Naquela tarde ensolarada de sábado, meu melhor amigo trocou votos e alianças com o amor da sua vida. E mais do que um amigo, eu fui seu padrinho.

Tivemos que refletir um pouco para fazer as contas, até a matemática finalmente bater e relevar exatamente a quanto tempo éramos amigos. Vinte e dois anos. Ele provavelmente foi o meu primeiro amigo nesta vida, considerando o contexto em que nos conhecemos – logo na pré-escola. Pelo que lembramos, eu era aquele que chorava em um canto o tempo todo porque estava em um lugar estranho e desprotegido. Um padrão que, convenhamos, eu não necessariamente abandonei; apenas o adaptei às minhas novas circunstancias. E o meu amigo, bom, tomou esta nomenclatura para si porque achava errado o modo como as outras crianças tiravam sarro de mim. Eu era filho único na época e não imaginava uma vida diferente. A vida, por outro lado, decidiu que seria melhor que eu a navegasse com um irmão – mesmo que não fosse por sangue.

Nós crescemos juntos; um pouco na minha casa, um pouco na dele. Nossos pais e mães eram “tios” e “tias” um do outro. Comemoramos aniversários juntos, passamos finais de semana à toa, dando risada de nada – absolutamente nada – por horas e horas. E quando eu precisava de ajuda – quisesse eu admitir ou não – ele estava lá para me apoiar. O amigo que se tornou irmão, que virou meu ídolo. Alguém que me inspirava a ser mais corajoso, mais esperto e, por que não?, menos desbocado para evitar arranjar encrencas gratuitas por aí.

Continuamos estudando juntos por anos, até o colégio ser forçado a nos separar porque nenhum professor dava conta de nós na mesma sala. Ensino básico, fundamental, médio, até a formatura do colegial. E a formatura dele no ensino superior depois disso, e a minha.

Eu me mudei de cidade algumas vezes desde então, enquanto ele saiu do país por uns meses. Mas nenhuma distância interrompia as conversas que tínhamos há anos, sem necessidade de dar um novo “oi”. Aliás, quando eu fui embora, nós nem nos despedimos. Ambos esquecemos, por acaso, que depois da última vez que saímos juntos, eu não estaria mais por perto. Talvez nós soubéssemos que não era nenhuma despedida. As melhores amizades, as que perduram, são aquelas que dispensam as despedidas.

No aniversário dele, eu escrevo textos. No meu, ele telefona. E nas festas de final de ano, sempre tentamos dar um “alô” um para o outro, para renovar os votos de saúde e felicidade para o ano seguinte. Tem sido assim desde que eu me conheço por gente. O companheirismo, o suporte, a continuidade.

Tudo isso me veio à mente quando eu o vi caminhar até o fim do corredor que levava ao altar da igreja. Uma felicidade absurda tomou conta de mim, como se aquele dia especial fosse meu e não dele, mas ambos sabíamos que era nosso. Depois de anos sendo protegido, escutando sermões e levando tabefes e socos pra que eu caísse na real e deixasse de frescuras, era a minha vez de ser o seu suporte. O padrinho da união entre ele e sua esposa, com testemunho assinado e certificado, que iria prezar por eles até que a morte separasse a todos nós.

***


Ele nunca lê o que eu escrevo. Acha meio “eh...”, mas ainda considera um ofício bacana que eu escolhi para mim. Felizmente, sua nova esposa lê e certamente fará questão de mostrar a ele o mais novo sentimentalismo transcrito do seu amigo. E deixo aqui para ambos os meus mais sinceros e profundos votos de felicidade para esta nova fase da vida que se inicia. O começo de um novo ciclo, uma nova família e um novo mundo que eu, por sorte, já anotei o endereço para visitar na próxima vez em que estiver pela cidade.


Eu costumava pensar que os dias mais felizes das nossas vidas deveriam envolver coisas que acontecem conosco, mas não é bem assim que a felicidade funciona. Felicidade de verdade mesmo é aquela que se compartilha. E o convite daquele casal para fazer parte do seu dia especial, foi a última vez que eu me peguei duvidando disto.

domingo, 12 de junho de 2016

O amor da sua vida


Amor. Quatro letras com um conceito imenso. Tão imenso que nada já foi capaz de compreendê-lo por inteiro. Nenhum texto, nenhuma música e, no meu caso pelo menos, nenhuma garota em particular. Há quem acredite que para cada amor que se perde, é aprendizado que precisávamos obter antes de encontrar aquele que irá perdurar pelos próximos invernos. Aquele amor que irá tomar a sua mão e nunca mais a soltará. Aquele amor que dará risada das suas piadas sem graça. Aquele amor que, por mais mal-humorada e descabelada que ela esteja pela manhã, ainda parecerá perfeita para você. Sem maquiagem, sem truques, sem disfarçar as arestas ou polir o que sinceramente quer dizer. Eu não sei quanto a você, mas acreditar nisso é o que me tira da cama todos os dias. “Será que eu a encontrarei hoje?” E é nisso que eu penso pouco antes de adormecer à noite. “Será que eu a conhecerei amanhã?

***

Quer saber se está amando alguém? É bem simples. Imagine que você está na cama; já passa da meia-noite e não há sinal de sono em sua mente. Seu celular vibra no criado mudo, notificando que há uma nova mensagem. De quem você gostaria que fosse?

***

Eu amo muito. Até mais do que deveria. E em todas as vezes que já senti algo assim por alguém, é sempre sem moderação. Excessivo, desconcertante, constrangedor, agonizante e igualmente esperançoso. Traz à tona o melhor e o pior de mim, sempre em extremos, e me faz chorar em ambos os casos – por alegria ou por saudade. Por não acreditar que alguém como você poderia fazer parte da minha vida, e por não me agüentar de ansiedade até o momento em que eu a verei de novo.

Quantos filmes eu já assisti sozinho, sofrendo em parte porque a sua mão não estava ao meu alcance para segurar? E as músicas que escutei, imaginando que haviam sido escritas para nós? E as prosas e poesias que desabafei na vaga esperança de que chegassem até os seus olhos? Esses olhos que parecem enxergar quem eu sou de verdade, além de todas as palavras mal ditas e gestos distraídos que sempre me deixam arrependido de alguma maneira. Esses olhos que parecem entender e perdoar tudo o que eu sou e tudo que já fiz, porque sabe que foi preciso para agüentar a espera até você aparecer. Porque não há nada de errado em ser frágil, carente, humano. Porque eu fiz por você, meu bem. Meu lar.

Imagine se um dia eu descobrisse que você acompanha os meus dramas? Ou então, que gostaria de fazer parte deles. Que adoraria ser a protagonista dos meus sonhos, desde os mais épicos até os lugares-comuns em que os amores tendem a se refugiar: as mãos dadas no shopping, o jantarzinho à dois, as implicâncias em lojas de departamento sobre qual jogo de lençol é mais a nossa cara... Desde as bobeiras mais infames até os afagos mais intensos, como o cansaço que se dissipa ao fim do dia quando me deparo com você, deitada ao meu lado, e redescubro que não há nada tão intransigente nesse mundo que interfira no que há entre nós e tudo que construímos juntos. Assim como você vê em mim alguém digno da sua honestidade, em seus olhos eu vejo esperança. Como se de algum modo, há como dar um jeito em toda a loucura e insensatez no mundo lá fora. Apenas continue comigo, querida...

Mas de nada adianta pensar sobre você, ou sonhar sobre você, se eu também não for quem você procura. Ou, quem sabe, alguém por quem valesse a pena esperar tanto tempo. Eu não sou a pessoa mais amável que existe. Cometo erros em um piscar de olhos e faço estragos monumentais com poucas palavras que já me custaram outras companhias e até outros sonhos. Sou instável, neurótico, cansativo, contraditório. Reclamo demais e me contento com... Nada. Tenho as minhas teorias furadas, minhas crenças irrefutáveis, minhas vaidades invariáveis e um senso de propriedade tão desgraçado quanto o meu orgulho. Tudo isso e muito mais, que às vezes me mantém acordado à noite pensando... Por que alguém como você ficaria comigo?

***

E então eu me lembro que você também tem as suas manias. Seu pavio curto, sua língua afiada e seu olhar crítico. Seus questionamentos e suas inverdades. Suas falhas e seus sonhos desfeitos. Suas lágrimas e seu coração partido. E que, apesar de toda a vontade que eu sinto de desistir e aceitar que esse negócio de amor não é pra mim, você sempre me traz de volta. Porque eu sinto a sua falta e do quão melhor eu consigo ser ao seu lado.

Eu poderia viver sem você, mas eu não quero. É isto que faz a diferença. É você.

Não prometo que será simples. E definitivamente não será fácil. Teremos momentos de fraqueza e irresponsabilidade. Trocaremos palavras impensadas, bateremos portas e quebraremos pratos se necessário. Mas também teremos brindes, beijos, vinhos, rosas, sobrenomes e aniversários. Teremos um ao outro para nos manter aquecidos durante o inverno, refrescados no verão, filósofos com o outono e renascidos na primavera. Quando tudo parecer perdido, nós teremos amor. Amor que dura e que sustenta. Que acolhe e prevalece. Que nos inspira e nos revive.

Eu posso ser o amor da sua vida, meu bem. Você só precisa nos dar uma chance...

quinta-feira, 9 de junho de 2016

O mundo pós-romance


Toda a maturidade que eu consiga alcançar nesta vida talvez jamais compensará pelos mil e um conceitos distorcidos que eu aprendi antes de saber julgá-los melhor. Não há juízo ou psicologia que possam me salvar agora – e, acredite, bem que eu gostaria. Se parece exagero... Bom, primeiramente, a essa altura nenhum devaneio exagerado meu deveria te surpreender mais; apenas revire os olhos e espere que algum capítulo mais coerente seja publicado aqui. Mas caso haja surpresa, duas considerações: 1) que bom que ainda consigo chamar a sua atenção, mas 2) desta vez a neurose não partiu de mim. É um misto entre os ecos da infância e os revezes da pós-modernidade. Eu juro!

Tudo bem; até eu me confundi um pouco, mas isto só prova a minha mais nova teoria sobre a pós-modernidade. Pra simplificar: tudo começou com um dia frio, em que eu acordei com uma vontade inocentemente nostálgica e ironicamente simétrica de rever “A Era do Gelo”.

***

Em uma manhã dessas, enquanto preparava o café, eu resolvi desencavar da minha coleção de filmes algo para saciar minha vontade de voltar a ser criança um pouco – porque, vez por outras, só a minha imaturidade inata não parece ser o bastante. E depois de re-assistir um filme de desenho, este me deu saudade de outro que, por acaso, eu também tinha guardado em algum lugar. E foi só depois de algumas horas de inércia e DVDs animados que eu comecei a enxergar entre eles além de um padrão entre todos eles, mas uma herança invariavelmente intransferível: tudo o que eu aprendi nesta vida, eu aprendi assistindo desenhos.

Até aí tudo bem. Hoje mesmo ainda existem animações feitas especialmente para ajudar as crianças a desenvolverem suas habilidades motoras e cognitivas. O meu problema, no entanto, está no risco desses mesmos desenhos dentro do desenvolvimento emocional delas... Algo que ficou perturbadoramente evidente depois de re-assistir “Shrek 2” – que, na minha opinião, ainda é o melhor “Shrek” da franquia. E caso você não tenha assistido, ou só não se lembre, certamente já assistiu algo parecido porque o “plot” não difere muito dos clássicos mais antigos: há um mocinho (o herói), a mocinha (uma princesa), um vilão, uma série de obstáculos a serem superados e, por último (mas não menos traumatizante), um final feliz.

Eu me lembro de assistir o primeiro “Shrek” no cinema e de toda a repercussão que este causou, desde o ineditismo da figura considerada como monstruosa reposicionada como o herói da história, até uma reconstrução de valores com a moral de que aparências não são importantes em se tratando de histórias de amor. Tudo muito bonito, emocionante e cuidadosamente articulado em computação gráfica... Mas ainda emoldurado com o legado do final feliz.

Hoje, na época considerada como a pós-modernidade, novos conceitos circulam por aí que entram em conflito direto não só com o que nos foi apresentado antigamente, mas com quem os recusa fortemente sem nenhum argumento bem estruturado a não ser por um medo natural de mudanças. A revolução sexual, o movimento feminista, a globalização e tantos outros mudaram a maneira de enxergar as coisas, as pessoas e toda e qualquer relação que se estabeleça por aí. E eu acho tudo isso muito bom, até o detalhe infeliz que permanece sendo empurrado adiante: a cultura do “final feliz”.

E sabe por que isso me incomoda tanto? Porque é isso que eu ainda espero da vida.


Mas eventualmente a gente cresce e se depara com as verdades horríveis da vida que os pais tentam disfarçar dos filhos, por mais que os desenhos animados soltem algumas pistas em mensagens subliminares. Ou vai dizer que a sua visão de mundo não mudou depois disso:


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Os desenhos animados nos ensinam que apesar dos obstáculos e dos problemas, tudo ficará bem no final. Além disso, que amor existe para todos e a sua alma-gêmea está mesmo por aí; você só precisa encontrá-la e num piscar de olhos ambos descobrirão que pertencem um ao outro. Em contrapartida, a versão adulta dos contos de fadas – os filmes eróticos – perpetuam a noção de que não só o amor pode surgir nos lugares mais inesperados (ex: no meio da selva, em uma entrevista de emprego, ou na casa do seu amigo quando só a mãe dele está), mas que o sexo será incrível. E o motivo pelo qual estas indústrias ainda conseguem se sustentar é bem claro: diga o que quiser sobre os valores questionáveis ou os meios de produção utilizados, mas ambas estão no negócio de vender e reproduzir esperança.

O mundo pós-moderno, que por sinal ainda não recebeu um nome melhor porque estudiosos ainda não o compreendem bem o bastante para tal, talvez seja uma era marcada não só pelos avanços e descobertas que trouxe, mas pelos conflitos que causou. Mais especificamente, pela desesperança que propagou. Somos direcionados a vencer a vida aos vinte e poucos anos, alcançar o sucesso no máximo aos trinta, mantendo um equilíbrio emocional e profissional ao mesmo tempo em a mensalidade da academia seja bem aproveitada e a felicidade, por esta lógica, seja compensada pelo cansaço que tudo isso provoca. Não é a toa que tantos aplicativos são inventados – para facilitar a experiência humana.

Foram essas coisas que passaram pela minha cabeça enquanto eu assistia meus desenhos de infância naquela manhã fria. Eu sou um produto da pós-modernidade, capaz de raciocinar, questionar, investigar e opinar mais do que meus antepassados foram capazes durante suas vidas analógicas. Já faz tempo que perdi a minha inocência diante das coisas e das pessoas que passam por mim. E apesar de tudo isso, quando o Shrek salvou a princesa mais uma vez, tudo o que eu pude pensar foi: “quando tempo ainda vai levar para o meu final feliz chegar?

Houve um tempo em que eu possuía mais romances do que aplicativos na minha vida. Eu só não me lembro exatamente quando eu os perdi. A vida não é um conto de fadas. Heróis e princesas não existem. Mas talvez, na maior das ironias, todos nós ainda precisemos ser salvos.

domingo, 5 de junho de 2016

O "lindinho da titia"


Eu sempre digo que a culpa é da minha avó materna, que se casou com seu primo de primeiro grau e, atraindo assim a ira dos deuses, deu origem a todas as personalidades borderline que eu carinhosamente chamo de família. Desde os primos ridiculamente bem sucedidos – alguns já casados e com filhos, enquanto outros prosperaram na área profissional – até as tias impiedosamente carinhosas – que não perdem a chance de questionarem, em um eco de aconchego e ressentimento, quando é que o sobrinho querido irá visitá-las (e se trarão uma namorada junto) – até, enfim, a mãe literal de todas as minhas neuroses – que sempre me aconselhou, em matéria de amor e demonstração de afeto, que é sempre melhor pecar pelo exagero do que pela falta. Tudo isso e muito mais é o suficiente para explicar naturalmente os comentários sem censura nos meus posts do Facebook:


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Família é algo complicado, independente do endereço em que exista. Os personagens sempre se repetem: a mãe superprotetora, o pai bravo, a irmã pentelha, a tia descolada, o tio churrasqueiro, a prima gata (que sua mãe sempre faz questão de lembrar que é sua prima), o primo arruaceiro e, claro, eu: o filho que precisa ser ameaçado por chineladas para deixar o computador de lado e sair do quarto para dar “oi” às visitas. A ovelha negra que não sabe dar valor ao dinheiro e que só sabe ser irônico ou sarcástico quando fala. Claro que há exceções, mas aqui estou desabafando sobre os constrangimentos que vivi e, aparentemente, continuo vivendo através da vida em família:


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Tem dias em que eu me estresso e prefiro ficar no meu quarto. Pra quê almoçar juntos na mesa, se já nos vemos todos os dias?! Por que a minha irmã não precisa ajudar com as tarefas da casa?! Por que nada do que eu faço é bom o bastante, nunca?! E assim passam-se dias sem conversar, olhares mal trocados no corredor e encontros constrangedores na cozinha, quase como companheiros de apartamento que não dividem nada a não ser o aluguel e, neste caso, o DNA. Mas foi durante uma dessas discussões em que eu parei pra pensar exatamente sobre como eu me sinto em relação à minha família, e foi aí que eu descobri algo ainda mais terrivelmente familiar. Mais terrível ainda do que os comentários da minha tia.

Eu pensei sobre o dia em que eu saí de casa da minha mãe, sete anos atrás, para morar com meu pai em outra cidade. Algo que acabou por definir o começo da minha vida adulta e todos os desenganos que eu viria a cometer por conta própria, sem mais poder culpar minha mãe por me obrigar a ir almoçar na casa da minha avó e atrasar meus horários para fazer tarefa, ou coisa parecida. E pensei no dia em que saí da casa do meu pai para morar sozinho, e no quanto tudo naquela casa só iria depender de mim – desde a compra dos produtos de limpeza até o extermínio de baratas que apareciam pelo ralo do banheiro.

Além de tudo isso, eu me lembrei da minha infância: dos aniversários magnânimos que meus pais organizavam, reservando salões de festa e me obrigando a sentar e preencher os convites para cada um dos meus colegas de sala, considerados até então como os meus amigos que estariam prestigiando o meu dia. Lembrei inclusive dos vexames que eu causava ao receber os meus colegas no portão do salão, balançando os presentes embrulhados para tentar descobrir se era algo legal o bastante para deixar o Fulaninho entrar.

Lembrei das minhas primeiras paixões de colégio, e de quantas noites minha mãe passou acordada me consolando porque a Ciclana passou o recreio de mãos dadas com outro carinha – algo que me assustou ao considerar que este padrão não mudou muito com o passar do tempo e a invenção do WhatsApp.

Sobre meu pai, lembro da empresa onde ele trabalhava o transferir para outra cidade quando eu ainda era bem pequeno. E de que todas as vezes em que ele vinha me visitar, nós acabávamos por passear no shopping. Meu corredor favorito do shopping naturalmente era aquele em que ficava a loja de brinquedos. Colecionei vários durante minha infância – alguns ainda tenho guardados até hoje, expostos da estante da sala. Mas os brinquedos eram prêmios de consolação, assim como guardá-los tornava-se demasiadamente importante. Eram os tesouros que meu pai deixava para trás, junto comigo, quando a hora dele voltar para sua casa chegava.

Lembrei dos almoços em família aos domingos, quando reuniam-se todos os primos, primas, tios, tias, avôs e avós. Apesar dos meus pais serem separados, era de se imaginar que tais reuniões deixariam de existir. Pelo contrário, no meu caso: passaram a existir em dobro. E a cada domingo, um novo dilema: almoçar com a família do pai ou da mãe? Mesma coisa durante as festas: passe o Natal com um dos pais e o Ano Novo com o outro, mas qual e quando?

***

Hoje moro em Foz do Iguaçu com meu pai e minha irmã. Algo que decidi fazer porque havia um vazio em minha vida que nada em meu apartamento cheio de tralhas parecia preencher – nem mesmo os amigos que se tornaram como família para mim. E quanto mais relembrava sobre minha família, mais claro tornou-se a infeliz ironia: por mais que eu diga que minha família é irritante, competitiva, exagerada, espalhafatosa, distante ou injusta comigo, tudo que eu sempre fiz nesta vida foi pensando neles.

É por isso que visito minha mãe, minha avó e minha coleção de tias em Londrina a cada data comemorativa importante em que a minha presença não só é importante, mas bem vinda. É por isso que moro onde moro hoje; porque não queria mais viver sozinho, e meu pai me ofereceu uma oportunidade de continuar correndo atrás dos meus sonhos, ao mesmo tempo em que haveria com quem compartilhá-los quando eu chegasse da faculdade à noite. E é por isso que, na maioria das vezes, eu deixo os comentários infames e sem filtro da minha tia permanecerem anexados aos meus posts: é a nossa maneira de permanecer conectados e atualizados uns sobre a vida dos outros.

Tem dias em que eu amo a minha família, e outros que nem tanto. São aqueles capazes de te levantar quando você está se sentindo pra baixo, e de te diminuir com a mesma facilidade quando percebem que você está se sabotando e desperdiçando seu potencial com amizades impróprias, relacionamentos infames e carreiras sem rumo. São aqueles que continuam oferecendo comida para você, só para reclamarem que você está ficando muito gordo. São aqueles que brigam porque você não liga o bastante para eles, mas também nunca escutam o celular tocar quando você telefona.


Às vezes é a família em que você nasce que te oferece o porto mais seguro da sua vida, e às vezes é a família que você constrói para si mesmo. Seja como for, são aqueles que nunca deixam você se sentir sozinho. Nem que seja através de comentários de Facebook.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Alguém novo?


“Pessoas que precisam de pessoas são as pessoas mais sortudas do mundo”. Assim diz o refrão de uma famosa canção de um musical de 1964, fazendo alusão ao quanto vale mais a pena uma vida compartilhada do que uma solitária. A canção também abusa da repetição do termo “pessoas” exatamente para exaltar que, como se costuma dizer por aí, quanto mais gente envolvida na nossa vida, melhor. Só não entenda errado: nada tem a ver com a quantidade de seguidores que você tem em alguma rede social, mas com o amor que há em comum. Seja por um curso de faculdade, ou um passatempo em particular, ou simplesmente o amor que vocês tem entre si. Quando eu comento, divago, questiono e sinto falta de relacionamentos, mais vezes do que outras estou falando daqueles que não necessariamente envolvem andar de mãos dadas no shopping. Falo de amizades; coisa que eu nunca saberei explicar ao certo como já fui capaz de criar e de manter ao longo dos anos.

Há quem tenha o dom natural de se enturmar em um grupo de pessoas que nunca viu antes, apresentando-se e perguntando logo em seguida qual é o seu nome, idade e se, por acaso, não quer sair dessa carteira ao fundo da sala para sentar mais pra frente. E há algo de fantástico nessas pessoas, capazes de algo que parece simplesmente impossível para quem é tímido demais para dizer qualquer coisa em voz alta em uma sala cheia de desconhecidos: estender uma mão, puxar um assunto, descobrir alguém novo. Digo por isso por experiência própria, porque eu sempre fui do tipo que fica sentado ao fundo da sala tentando me disfarçar – fingindo ler um livro ou escutando música com fones de ouvido. Observando todas as outras pessoas se conhecerem, se combinarem, se refazerem. Como elas conseguem?!

Eu admito que em parte é o clássico medo do novo que me mantém paralisado no meu lugar. Incapaz de imaginar uma primeira conversa, atravessando todo o constrangimento inicial e questionário básico até finalmente encontrar algo familiar o bastante em alguém estrangeiro que pare de fazer com que eu me sinta ansioso. Relacionamentos amorosos tem como via de regra trazer a tona as inseguranças do tipo “tomara que dê certo dessa vez”, ainda com uma esperança resguardada de que mesmo que não seja, haverá outras oportunidades. A diferença em se tratando de amizades é que começá-las parece ser ainda mais complexo. Como uma amizade começa?

***

Quando somos crianças, amizades parecem ser mais espontâneas do que reais. Começam porque somos da mesma série, do mesmo tamanho, temos a mesma idade e gostamos dos mesmos brinquedos. E a medida em que continuamos na mesma sala de aula, sentando um ao lado do outro, a amizade vai se alongando. O problema é que às vezes alguém pode ser mudado de sala, ou simplesmente partir. Ou então, quando as aulas acabam e não há nada concreto que nos motive a estar juntos. Se quisermos nos reunir para brincar, terá que ser porque queremos. Porque sentimos falta um do outro. Porque brincar sozinho é chato. É triste. E a criança que não era convidada para brincar com os outros colegas de sala, é a mesma que chega na faculdade e não sabe como se enturmar com os outros. Por isso procura um lugar ao fundo da sala, e luta contra a própria ansiedade para disfarçar está tudo bem, mas sente alarmes dispararem dentro de si quando alguém se aproxima.

“Será que é alguém que quer me conhecer?! Que vai me perguntar alguma coisa com a qual eu possa ajudar? Eu quero fazer amigos ,só não sei como! Puxe um assunto, qualquer assunto! Vamos combinar de fazer alguma coisa e... Ah, aquele “oi” era para a pessoa sentada atrás de mim. Que pessoal animado. Deve ser legal isso. Fazer parte disso. Mas tudo bem...”

***

Para mim, começa quando eu finalmente paro de brigar comigo mesmo e abandono a noção de que precisar de outras pessoas é alguma espécie de “derrota”. Depois de morar sozinho por anos, meu senso de independência se tornou mais distorcido do que poderia – ao ponto de acreditar que outras pessoas que não o faziam simplesmente não eram capazes de viver por conta própria. Ironicamente, estas mesmas pessoas pareciam estar sempre acompanhadas. E grande parte do tempo que morei sozinho, eu realmente estive sozinho. Até o dia em que eu arrisquei sentir-me vulnerável e abri a porta para que alguém entrasse na minha vida de novo. Temendo, como uma criança, que quem se aproximasse de mim não gostasse do que iria encontrar e fosse embora, me deixando sozinho de novo. E entre o nervosismo, a ansiedade, a aparente falta de interesse e a cara de bravo que você acha que eu tenho, a gente não se conhece, não se fala, e jamais descobre que tínhamos mais em comum do que o pessoal que você já conheceu.

Eu não sei como conhecer pessoas ou manter amizades. Independente da complicação habitual de relacionamentos e os comprometimentos, mal-entendidos e desgastes que causam, eu não sou alguém fácil de se lidar. Tenho um ego do tamanho do mundo e um orgulho igualmente inchado que o acompanha. Acredito estar sempre certo e aposto fortemente em blefes quando não tenho certeza sobre algo. Sou preguiçoso, neurótico, exagerado, dou risada das coisas mais idiotas possíveis e choro por algo que aconteceu há anos e que me deixou quebrado até hoje. E há quem nunca fique sabendo disso, porque a cara parece ser de bravo, a postura parece ser de alguém chato, e eu nunca, absolutamente nunca, irei admitir uma derrota pessoal dessas para alguém que pode acarretar à fragilidade da minha auto-confiança. Fragilidade porque, “infelizmente”, eu preciso sim de outras pessoas. Sortudas mesmo são as pessoas que aceitam que precisam de outras pessoas. Amores e amizades, embora sigam vertentes diferentes de relacionamentos, nascem da mesma fonte: a humildade.

Mas eu acho que ando progredindo um pouco, porque depois de mais de cem posts e desabafos sobre medo e insegurança, eu finalmente alcancei o melhor porto-seguro possível: uma mesa cheia de amigos em um bar onde o dono já nos conhece. E a minha timidez parece ter sido perdida há várias rodadas atrás, porque só o que eu sei fazer agora é convidar mais gente para participar. Me sinto até outra pessoa!

Uau. Sou alguém novo. Quem diria...